sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Resenha #40 - Número Zero (Umberto Eco)

Resenha publicada originalmente no blog Entre Contos.
[SEM SPOILERS]
“Número Zero” foi a último romance de Umberto Eco, lançado em 2015. O autor que, entre outras coisas, foi um estudioso da mídia e fez nesta obra um panorama sarcástico do jornalismo atual. A estória começa jogando o leitor, logo de cara, na paranoia de Colona, um redator fracassado que consegue um emprego num jornal que está para ser lançado – que se chama Amanhã. Grande parte da estória se passa numa retrospectiva de Colona o seu tempo no jornal, onde entendemos o motivo seu tormento. Logo em seguida, quando Colona recebe a proposta de trabalho de seu chefe, Simei, descobrimos que o jornal é apenas uma arma de seu financiador misterioso para galgar poder na alta sociedade financeira italiana chantageando com notícias desfavoráveis a seus desafetos. O trabalho de Colona, Simei e dos outros seis colegas é criar o jornal, montando edições de exemplo para mostrar ao dono com seria a publicação quando lançada, essas edições são chamadas de número zero.

Mau jornalismo
O ambiente da redação é onde acontece uma verdadeira aula de mau jornalismo, o perfil extremamente antiético do jornal é delineado pelo chefe Simei com um humor ácido e desapaixonado. Enquanto os dias passam Colona envolve-se em longas conversas com seu colega Braggadocio onde ele o coloca a par de uma investigação sobre uma teoria de que Mussolini sobreviveu a 2ª Guerra Mundial. Estas partes foram as mais massantes da leitura, ainda que contenham uma crítica pertinente aos que alimentam esse tipo de teoria.

Itália: Terra da Pizza
O patrão ricaço e misterioso de Colona e o fato da estória se passar em 1992, são referências a operação “Mãos Limpas”, que desestabilizou o sistema político italiano naquela época e que veio a se reconfigurar quando Silvio Berlusconi, o empresário milionário (dono de jornais e do clube de futebol Milan) se tornou primeiro-ministro da Itália, cargo que ocupou pelas duas décadas seguintes. A partir dai fica mais evidente que a (falta de) ética do jornal é a forma que Umberto Eco usou para criticar a política italiana que nasceu dali, tão corrupta ou mais que a anterior, e a crise econômica que se acentuou de uns anos para cá no país. Enfim, como dissemos no Brasil: tudo acabou em pizza, mas Eco encontrou uma analogia mais interessante. O nome do jornal em que colona trabalha, nunca chega a ser lançado. É o amanhã que nunca vem.

Considerações finais
Por ser uma estória curta, (são duzentas páginas em fonte grande) não há muito espaço para o desenvolvimento do protagonista, contudo está longe de ser uma estória rasa, como já vi em algumas resenhas, pois o texto tem várias camadas que remetem a história italiana desde a segunda guerra até o período de Sílvio Berlusconi, que podem escapar ao leitor despreocupado brasileiro. Número Zero parece ser um livro simples mas esconde muito elementos não-ditos, assim como as notícias de um jornal.

Separei uns trechos interessantes, que se passam na redação do Amanhã.

— A questão é que os jornais não são feitos para divulgar, mas para encobrir as notícias.

— Não são as notícias que fazem o jornal, e sim o jornal que faz as notícias.

— Os jornais ensinam como se deve pensar…as pessoas não sabem no início que tendências têm, depois nós lhes dizemos e elas percebem que as tinham.

— Percebam que hoje, para contra-atacar uma acusação não é necessário provar o contrário, basta deslegitimar o acusador.

— Não é necessário inventar notícias, é só requentar.
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quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Conto autoral - Deserto procedural

Caminho por um deserto procedural onde a areia se tingiu vermelha a cada passo meu. Acima, apenas o céu ralo, cinzento e o sol distante. Já faz um século. Foi tudo um jogo de sobrevivência contra Marte. Respirar algo que não poeira, pensar algo que não seca. Apostamos na roleta e deu vermelho. Para quê servem agora todas essas palavras, se ninguém verá o último primata perecer neste derradeiro evento?
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domingo, 21 de agosto de 2016

Resenha #39 - Visões Perigosas: Uma arque-genealogia do Cyberpunk (Adriana Amaral)

Visões Perigosas: uma arque-genealogia do Cyberpunk é mais um livro de não-ficção que eu comento no blog, o primeiro foi Cypherpunks do Julian Assange. Vou apontar apenas algumas características básicas do livro que, espero eu, despertem o interesse do leitor pelo tema.

A obra é uma adaptação da tese de doutorado da autora, Adriana Amaral, na área da comunicação no qual ela disserta sobre o Cyberpunk. Segue um caminho não linear preferindo tecer uma teia intrincada entre subculturas relacionadas a música, cibercultura, da literatura de ficção científica e no cinema. Há um bom motivo para isso: o cyberpunk é um subgênero que se faz presente em todas essas áreas. Dessa forma a autora desconstrói o conceito de cyberpunk para investigar as partes separadamente traçando pontos de contato com o punk, cultura hacker e principalmente com a obra Philip K. Dick, colocando-o como proto-cyberpunk. Por fim, as remonta nas análises dos filmes Blade Runner, Vingador do Futuro e Minority Report (baseados na obra de Philip K. Dick) que trouxeram popularidade a estética cyberpunk.

Os capítulos e subcapítulos são extremamente subdivididos. Para quem já está acostumado com a escrita acadêmica talvez muitos deles pareçam inúteis porém a metodologia não linear justifica o cuidado na organização do texto para não torná-lo desnecessariamente inacessível. Digo isso pois a leitura é densa, carregada dos conceitos necessários de um doutoramento mas para quem já conhece os nomes das bandas, músicos, escritores de ficção científica, movimentos culturais, filmes,  contextualizados ao longo da leitura (nem que seja só de nome) vai conseguir se situar bem melhor que num livro e aproveitar a leitura.

A densidade da obra pode afastar o leitor casual. Não é leitura de praia mas se você não tem medo de texto acadêmico e já se interessou pelos termos "cyberpunk" e "Philip K. Dick" o livro é mais que recomendado. Caso o leitor queira uma resenha de cunho acadêmico esse link te leva direto para a única que encontrei deste livro.
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domingo, 14 de agosto de 2016

Resenha #38 Conto, Charlotte Sometimes (Fábio Fernandes)

"Charlotte Sometimes" é um conto de Fábio Fernandes pela Editora Draco, que faz parte da coleção Contos do Dragão que são os contos publicados pela editora em formato digital que por vezes aparecem em coletâneas.

A estória se passa em um sonho ou na realidade? O que importa aqui é acompanhar a viagem de Júlio enquanto ele tenta descobrir enquanto testa seus sentidos e suas lembranças com sonhos. A única coisa que ele sabe é que está num bar tomando cerveja. A leitura flui rápida e prende o leitor pelas referências que não são apenas citações mas influências na estória, como a de Philip K. Dick. O final é surpreendente.

O conto possui cerca de 10 páginas e pode ser encontrado de graça aqui e é uma boa pedida para quem ainda não tem contato com livros digitais ou, como no caso deste que vos bloga, não suporta ler muitas páginas seguido no celular ou pc.
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quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Resenha #37 – A Rosa dos Ventos (Ursula K. Le Guin)

[SEM SPOILERS]
A Rosa dos ventos (The compass rose) é uma coleção de contos de Ursula K. Le Guin que saiu em 1982 pela Europa-América, editora de Portugal. Ela combina contos de Fantasia, Ficção Científica e  ficção não-fantásticos em situações cotidianas, mas sem perder o tom intimista e profundo nas estórias.


Os contos são agrupados e nominados com pontos cardeais (Nadir, Norte, Leste, Zênite, Norte e Sul) mas não ajudam a saber quando a estória será uma FC passada num planeta distante, uma pacata casa de família no Oregon ou um encontro entre um unicórnio e uma jovem indiana. Isso pode decepcionar quem busca ver a Úrsula Le Guin da Fantasia e/ou da FC pois estes gêneros não aparecem tanto.
A edição em português lusitano (só chega ao Brasil de paraquedas mesmo) pode prejudicar a imersão em algumas estórias para quem não está acostumado. Mesmo procurando no dicionário sinônimos para algumas palavras, alguns contos simplesmente me escaparam a compreensão. 

Como faço com os livros de contos, vou selecionar os cinco que mais gostei e quem leu pode comentar outro que gostou e ficou de fora.

SQ – Uma secretária relata sua experiência trabalhando na ONU. Um conto com bom enredo que mantêm um certo suspense até o final. Me pergunto se a autora já leu “O alienista” do Machado de Assis.

O diário da rosa – A estória se passa num futuro próximo onde os pacientes psiquiátricos são analisados com um pscicoscópio, um aparelho que expõe a psique humana em gráficos analisáveis. A estória é contada nos registros de uma doutora.

O olhar a mudar – Num futuro onde a Terra colonizou mais vários planetas de vinte planetas, em uma delas, que orbita a estrela laranja NSC-641, acompanhamos Mirian uma enfermeira da pequena e recente colônia. Ela cuida dos não adaptados ao planeta, mesmo com os comprimidos que ajudam o metabolismo dos colonos as proteínas produzidas no planeta. Os doentes, incapazes de acompanhar o ritmo do trabalho dos colonos, são artistas e é por conta da arte de Genady que tudo vai mudar. Considero o melhor conto do livro.

Os caminhos do desejo – Um grupo de etnógrafos da Terra, aparentemente indianos, Ramchandra, Tamara e Bob, estão numa lua do planeta Uper do sistema Yadir convivendo com os Ndiff uma sociedade muito simples, organizados quase como uma manada, mas que na sua língua é estranhamente parecida com o Inglês. É ótimo ver  real e o irreal na narrativa de Le Guin. (O conto que parece fazer parte do ciclo Rainnish) Foi indicado ao prêmio Nebula como melhor Noveleta.

Sur – O conto é uma carta com lembranças de uma mulher de em uma expedição ao Polo Sul, na Antártida que fez com mais oito mulheres entre os anos de 1909-10. O conto fecha muito bem o livro e mostra que as estórias de Le Guin valem mais pelo caminho percorrido que pelo final.

Para além dos meus cinco preferidos farei também uma menção a dois contos: “Autor das sementes de acácia e outros extractos da revista da associação de terolinguistas” e “Algumas abordagens ao problema da falta de tempo”, que aparecem como pequenos artigos cem linguagem científica que fazem uma sátiras ao modo como a ciência vê o mundo.
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segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Conto - Aqueles Que Se Afastam de Omelas (Ursula K. Le Guin)

Este é o conto completo de Ursula Le Guin, Aqueles que se afastam de OmelasPensei em escrever sobre o conto, mas achei melhor trazê-lo inteiro por ser curto demais para ser resenhado. Fica o convite ao caro leitor para ler e comentar. Quem for bom de tradução, pode sugerir melhorias a partir da versão original em inglês. Baixe ela aqui e faça uma sugestão que eu arrumarei na postagem.

Título originalThe Ones Who Walk Away From Omelas
Tradutor: JorgeK’3’58.

    Com um clamor de sinos marcados pela elevação das andorinhas, deu-se o início ao Festival de Verão da cidade de Omelas, brilhantes torres à beira-mar. O equipamento dos barcos no porto brilhavam com suas bandeiras. Nas ruas, entre as casas com telhados vermelhos e paredes pintadas, entre antigos jardins cobertos de musgo e sob avenidas de árvores, grandes parques do passado e edifícios públicos, as procissões se moviam. Algumas eram discretas: idosos em longas túnicas rígidas de malva e cinza, operários mestre austeros, quietos, mulheres alegres carregando seus bebês a bater papo enquanto caminhavam. Em outras ruas a música com batidas mais rápidas, um cintilante gongo e pandeiro, as pessoas dançavam, a procissão era uma dança. Crianças corriam, indo e vindo se esquivando, seus gritos altos subindo como o voo das andorinhas cruzando sobre a música e o canto. Todas as procissões dirigiam-se para o lado norte da cidade onde, num grande prado d’água chamado Green Fields, meninos e meninas, nus ao ar brilhante, com pés e tornozelos manchados de lama e esbeltos braços longos, se esforçavam em controlar seus inquietos cavalos antes da corrida. Os cavalos não usavam freios de metal, mas um arreios simples. Suas crinas foram trançadas com fitas prateadas, douradas e verdes. Eles alargavam suas narinas e empinavam e vangloriavam-se uns aos outros; eles estavam muito excitados; sendo o o cavalo o único animal a participar das cerimônias.

    Ao longe, ao norte e oeste, as montanhas se elevavam circundando metade de Omelas em sua baía. O ar da manhã era tão clara que a neve ainda coroando os Eighteen Peaks, queimava com o fogo branco-dourado através de milhas de ar iluminados pelo sol, sob o azul escuro do céu. Havia vento suficiente apenas para fazerem flutuar, de vez em quando, os estandartes fincados que marcavam a rota da pista de corrida. No silêncio dos grandes prados verdes pode-se ouvir a música sinuosa pelas ruas da cidade, mais distante e mais próximo e se aproximando, uma alegre doçura leve do ar que, de vez em quando, treme e se aglomera e estoura em um grande clangor alegre dos sinos. 

– Alegre! Como é que se pode dizer algo sobre a alegria? Como descrever os cidadãos de Omelas?

    Eles não eram pessoas simplórias, veja você, apesar de serem felizes. Mas não dizem palavras animadoras em demasia. Todos os sorrisos tornaram-se arcaicos. Dada uma descrição como esta tende-se a fazer certas suposições. Dada uma descrição como esta tende-se a procurar, nas proximidades, um rei, montado em um garanhão esplêndido e rodeado por seus nobres cavaleiros ou, talvez, em uma liteira dourada sendo transportado por grandes e musculosos escravos. Mas não havia rei. Eles não usam espadas nem mantinham escravos. Eles não eram bárbaros. Eu não conheço as regras e leis de sua sociedade, mas suspeito que elas eram singularmente poucas. Como eles conseguiram sem monarquia e nem escravidão, e também sem a bolsa de valores, o anúncio, a polícia secreta e a bomba. No entanto, repito que estas não eram pessoas simplórias, nem pastores dóceis, nobres selvagens, utópicos insossos. Eles não eram menos complexos do que nós. O problema é que temos um mau hábito, incentivado por pedantes e sofistas(1), de considerar a felicidade como algo muito estúpido. Só a dor é intelectual, só o mal é interessante. Esta é a traição do artista: a recusa em admitir a banalidade do mal e o terrível tédio da dor. Se você não pode vencer o inimigo, junte-se a eles. Se dói, repita-a. Mas, para louvar o desespero é condenar o prazer. Para abraçar a violência é perder o controle de todo o resto. Nós quase perdemos o tempo de espera; já não podemos descrever um homem feliz, nem fazer qualquer celebração da alegria. Como é que eu posso descrever o povo de Omelas?

    Eles não eram crianças inocentes e felizes – apesar de seus filhos serem, de fato, felizes. Eram inteligentes, maduros, adultos, apaixonados, cujas vidas não eram miseráveis. Ó maravilha! mas eu gostaria de poder descrevê-lo melhor. Eu gostaria de poder convencê-lo. Omelas soa, em minhas palavras, como uma cidade em um conto de fadas, há muito tempo, em um lugar muito longe, era uma vez.... Talvez seria melhor se você imaginasse com seus próprios lances de fantasia, supondo que eles chegarão à altura das circunstâncias, pois certamente eu não posso atender a todos vocês. Por exemplo, que tal tecnologia? Eu acho que não haveria carros nas ruas nem helicópteros acima delas; isso decorre do fato de que o povo de Omelas são pessoas felizes.

    Felicidade é baseado apenas em discernir o que é necessário, do que não é necessário mas não destrutivo e do que é destrutivo. Na categoria do meio, no entanto – a do desnecessário, mas não destrutivo que é de conforto, luxo, exuberância, etc – eles poderiam perfeitamente ter aquecimento central, trens de metrô, máquinas de lavar e todos os tipos de dispositivos maravilhosos que ainda não inventaram aqui, fontes de luz flutuantes, motores sem combustível, uma cura para o resfriado comum. Ou eles poderiam não ter nada disso; não importa, imagine o que você quiser. Eu me inclino a pensar que as pessoas das cidades acima e abaixo da costa foram chegando a Omelas, durante os últimos dias antes do Festival, em pequenos e velozes trens e bondes de dois andares e que a estação de trem de Omelas é na verdade o prédio mais bonito de cidade, embora mais simples que o magnífico Farmers' Market.

    Mas, mesmo que possua trens, temo que Omelas, até agora, se pareça a alguns de vocês um lugar tão bonzinho. Sorrisos, sinos, desfiles, cavalos, blá... Se assim for, por favor, adicione uma orgia. Se uma orgia for ajudar, não hesite. Não teremos, porém, templos a partir do qual surgirão belos sacerdotes e sacerdotisas nus já meio em êxtase e prontos para copular com qualquer homem ou mulher, amante ou estrangeiro, que deseje a união com a divindade profunda do sangue, apesar de que foi a minha primeira ideia. Mas, na verdade, seria melhor não ter nenhum templo em Omelas – pelo menos, não templos manipulados. Religião sim, clero não. Certamente os belos nus podem simplesmente vaguear, oferecendo-se como suflês divinos para a fome dos necessitados e do arrebatamento da carne. Deixe que eles participem das procissões. Como tamborins atingidos acima das cópulas e a glória do desejo ser proclamado sobre os gongos e (um ponto não insignificante) deixar a prole destes rituais deliciosos ser amada e cuidada por todos. Uma coisa que eu sei que não há em Omelas é culpa.

    Mas o que mais deve haver? Pensei a princípio que não havia drogas, mas isso é puritanismo. Para quem gosta, a doçura insistente e lânguida do drooz(2) pode perfumar os caminhos da cidade. Drooz que, pela primeira vez, traz uma grande leveza e brilho para a mente e membros e, em seguida, depois de algumas horas um sonho lânguido e visões maravilhosas dos últimos arcanos (3) e os mais íntimos segredos próprios do universo, assim como um emocionante prazer do sexo para além da crença; mas isso não é um hábito naquela cidade. Para gostos mais modestos eu acho que deveria haver cerveja. O que mais, que outra coisa mais pertence à cidade alegre? A sensação de vitória, certamente, a celebração da coragem. Mas, como a fizemos, sem clero, vamos fazer sem soldados. A alegria construída sobre matança bem sucedida, não é o tipo certo de alegria; não acontecerá; é temível e banal.

    Uma satisfação ilimitada e generosa, um triunfo magnânimo sentida não contra um inimigo externo, mas na comunhão com o melhor e mais justo nas almas de todos os homens em toda parte e no esplendor do verão do mundo: é o que incha os corações do povo de Omelas, e a vitória que eles comemoram é o da vida. Eu realmente não acho que muitos deles precisam tomar drooz(2).

    A maior parte da procissão chegou aos campos verdes agora. Um aroma maravilhoso de cozidos sai das tendas vermelhas e azuis de alimentação. Os rostos das crianças pequenas são amigavelmente pegajosos; na barba grisalha benigna de um homem estão entrelaçados migalhas de saborosa pastelaria. Os jovens e as meninas montaram seus cavalos e estão iniciando um grupo em torno da linha de partida do percurso. Uma mulher idosa, pequena, gorda e sorridente está distribuindo flores de um cesto e jovens homens altos as colocam em seus cabelos brilhantes. Um garoto de nove ou dez anos se senta na borda da multidão, sozinho, tocando uma flauta de madeira. As pessoas param para ouvi-lo e sorriem, mas não falam com ele, pois ele nunca deixa de tocar e nunca olha para eles, seus olhos escuros totalmente absorto na magia fina e doce da música.

    Ele termina e, lentamente, baixa as mãos segurando a flauta de madeira. Como se esse silêncio privado fosse um sinal, de uma só vez, soam as trombetas de um pavilhão perto da linha de partida: imperioso, melancólico, profundo. Os cavalos, em suas pernas finas, recuam em resposta. Os jovens montadores, demonstrando tranquilidade, acariciam os pescoços dos cavalos para acalmá-los, sussurrando: "Calma, calma, minha beleza, minha esperança ...." Eles se colocam ao longo da linha de partida conforme a classificação. As multidões ao longo da pista de corrida são como um campo de grama e flores ao vento. O Festival de Verão já começou.

    Você acredita? Você aceita o festival, a cidade, a alegria? Não? Então deixe-me descrever mais uma coisa.

    Em um porão debaixo de um dos belos edifícios públicos da Omelas, ou talvez na adega de uma das suas espaçosas residências existe um quarto com uma porta trancada e sem janelas. Uma réstia de luz penetra pela poeira entre rachaduras nas placas, de segunda mão de uma janela cobertas de teias em algum lugar do outro lado da adega. Em um canto do pequeno quarto um par de esfregões, duros, coagulados, fedorentos estão perto de um balde enferrujado. O chão é de terra, um pouco úmido ao toque, como adega de terra normalmente é. O quarto é de cerca de três passos de comprimento e dois de largura: um mero armário de vassouras ou sala de ferramenta em desuso. Neste quarto uma criança está sentada. Poderia ser um menino ou uma menina. Parece ter cerca de seis anos mas, na verdade, têm quase dez. É débil mental. Talvez nasceu com defeito ou, talvez, tenha se tornado imbecil através do medo, desnutrição e abandono. Ela esfrega seu nariz e, ocasionalmente, se atrapalha vagamente com seus dedos do pé ou genitais, pois fica encolhido no canto mais distante do balde e dos dois esfregões. É medo dos esfregões. Ela os acha horríveis. Ela fecha os olhos, mas sabe que os esfregões ainda estão lá, de pé; e a porta está fechada; e ninguém virá. A porta está sempre trancada; e ninguém nunca vem, só que às vezes – a criança não tem compreensão de tempo ou intervalo – às vezes a porta chocoalha terrivelmente e se abre e uma pessoa, ou várias pessoas, estão lá. Um deles pode entrar e chutar a criança para fazê-la levantar-se. Os outros nunca chegam perto, mas a espreitam com olhos assustados, enojados. A tigela de comida e o jarro de água são rapidamente preenchidos, a porta é trancada e os olhos desaparecem. As pessoas na porta nunca dizem nada, mas a criança, que nem sempre viveu na sala de ferramenta e pode lembrar-se de luz solar e da voz de sua mãe, às vezes fala. "Eu vou ser bom", ela diz. "Por favor, deixe-me sair. Vou ser bom!" Eles nunca respondem. A criança costumava gritar por ajuda durante a noite, e chorar bastante tempo, mas agora ela só faz uma espécie de choramingo, "eh-haa, ehhaa", e fala menos e com menos frequência. Ela é tão fina que não há panturrilhas nas pernas; sua barriga se projeta; ela vive com meia tigela de farinha de milho e gorduras por dia. Ela está nua. As suas nádegas e coxas são uma massa de feridas infeccionadas, enquanto se senta em seu próprio excremento continuamente. Todos eles sabem que está lá, todo o povo de Omelas. Alguns deles chegaram a vê-la, outros se contentam apenas em saber que está lá. Todos eles sabem que tem que estar lá. Alguns deles entendem o porquê, outros não, mas todos entendem que a sua felicidade, a beleza de sua cidade, a ternura de suas amizades, a saúde de seus filhos, a sabedoria dos seus estudiosos, a habilidade de seus fabricantes, mesmo a abundância da sua colheita e o clima agradável de seus céus, dependem inteiramente do sofrimento abominável desta criança.

    Isso geralmente é explicado às crianças quando estão entre oito e doze anos, sempre que elas parecem capazes de compreender; e a maioria das pessoas que vêm para ver a criança são jovens, embora muitas vezes adultos venham, ou retornem, para ver a criança. Não importa quão bem o assunto tenha sido explicado a eles, esses jovens espectadores sempre ficam chocados e enojados com a visão. Eles sentem desgosto, quando se julgavam superiores. Eles sentem raiva, indignação, impotência, apesar de todas as explicações. Eles gostariam de fazer algo para a criança. Mas não há nada que possam fazer. Se a criança for trazida à luz do sol, fora daquele lugar vil, se fosse limpa e alimentada e confortada, o que seria uma coisa boa, na verdade; mas se isso fosse feito, nesse dia e nessa hora toda a prosperidade, beleza e prazer de Omelas iria murchar e ser destruído. Esses são os termos. 

    Para trocar toda a bondade e graça de cada vida em Omelas por essa pequena e única melhora; jogar fora a felicidade de milhares para a possibilidade da felicidade de uma: a de que seria deixar a culpa dentro dos muros de fato. Os termos são estritos e absolutos; nem mesmo uma palavra amável pode ser dita à criança. Muitas vezes, os jovens vão para casa em lágrimas, ou em uma raiva sem lágrimas, quando eles viram a criança e enfrentaram este terrível paradoxo. Eles podem meditar sobre isso por semanas ou anos. Mas, com o passar do tempo eles começam a perceber que, mesmo que a criança pudesse ser libertada, ela não iria ficar muito bem com sua liberdade: um pouco de prazer vago de calor e comida, sem dúvida, mas pouco mais. É muito degradada e imbecil para conhecer qualquer alegria real.

    Ela teve medo por tanto tempo que nunca mais seria livre do medo. Seus hábitos são demasiado rudes para ela responder a um tratamento humano. Na verdade, depois de tanto tempo que provavelmente seria infeliz sem paredes sobre ela para protegê-la, e sem as trevas para os seus olhos, e seu próprio excremento para sentar-se por cima deles. Suas lágrimas pela injustiça amarga, secam, quando eles começam a perceber a terrível justiça da realidade, e a aceitá- la. No entanto, as suas lágrimas e raiva, as provas da sua generosidade e da aceitação de sua impotência o que são, talvez, a verdadeira fonte do esplendor de suas vidas. 

    Deles não é, felicidade irresponsável e insípida. Eles sabem que, como a criança, não são livres. Eles conhecem compaixão. É a existência da criança e seu conhecimento de sua existência que possibilita a nobreza de sua arquitetura, a pungência de sua música, a profundidade de sua ciência. É por causa da criança que eles são tão gentis com as crianças. Eles sabem que se uma coitada não estivesse lá a choramingar no escuro, o outro, o flautista, não poderia fazer nenhuma música alegre como os jovens cavaleiros que se alinham em sua beleza para a corrida à luz do sol da primeira manhã de verão. 

    Agora, você acredita neles? Eles não são mais críveis? Mas há mais uma coisa a dizer, e isso é muito incrível.

    Às vezes, uma das meninas ou meninos adolescentes que vão ver a criança não vai para casa para chorar ou ficar com raiva; não voltam, de fato, para casa. Às vezes, também um homem ou uma mulher muito mais velha fica em silêncio por um dia ou dois, e depois sai de casa. Essas pessoas vão para a rua, e caminham sozinhas. Mantêm-se de pé andando e andam em linha reta para fora da cidade de Omelas, através de seus belos portões. Elas continuam, atravessando os campos agrícolas de Omelas. Cada um vai sozinho, o jovem ou menina, homem ou mulher. A noite cai; o viajante tem de passar pelas ruas da vila, entre as casas com iluminação amarela nas janelas, e na escuridão dos campos. Cada um sozinho, eles vão para o oeste ou para o norte, em direção às montanhas. Eles vão. Abandonam Omelas, sempre em frente para a escuridão, e eles não voltam. O lugar para onde eles se dirigem é ainda menos imaginável para a maioria de nós do que a cidade da felicidade. Eu realmente não posso descrevê-lo. É possível que não exista. Mas eles parecem saber para onde estão indo, aqueles que se afastam de Omelas.

(1) Apesar do original “sophisticates” optei por sofistas (ou poderia ser sofismáticos) (N. T.)
(2) Drooz. É possível supor que este termo não foi apenas uma palavra que Le Guin criou caprichosamente. Parece que ela joga com, druse que é uma incrustação de cristais em uma rocha e com druze que é um substantivo que significa um membro de uma seita islâmica específica. Ambos são foneticamente pronunciado, como se pode imaginar, da mesma forma ou muito próximo de Drooz. A primeira definição de fontes de imagens de um medicamento tomado pelos cidadãos de Omelas que se cristaliza. Considerando que a segunda implica talvez uma conotação religiosa que faz sentido no contexto que, pouco antes de sua adição de drogas, o narrador discute religião e possivelmente foi um termo familiar para Le Guin devido ao fato de seu pai ter sido antropólogo. (N. T.)
(3) Arcano - (Subst.) Mistério, segredo. (Adj.) Enigmático, misterioso. (N. T.)
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