segunda-feira, 27 de março de 2023

Resenha #278 Saros 136 (Alexey Dodsworth, Ioannis Fiore)


"Saros 136" é uma HQ lançada pela editora Draco com roteiro de Alexey Dodsworth e desenhada por Ioannis Fiore. A história se passa no mesmo universo da duologia Dezoito de Escorpião e Esplendor, cruzando o destino de quatro personagens separados pela distância e pelo tempo mas unidos em um evento catártico que vai salvar a raça humana, modificando-a para sempre.

Acompanhamos um sacerdote africano em 1865 fugindo de captores portugueses. Um astrofísico inglês na expedição que comprovou a tese de Einsein no Ceará de 1919. Uma astronauta brasileira arriscando a vida para proteger uma base lunar em 2045. Uma pesquisadora indiana que tem sobre os ombros a capacidade de trazer a cura de uma epidemia em 2135. Esses personagens e tempos se misturam com visões destes personagens uns com os outros, que os fazem parecer loucos para seus próximos. O narrador também está envolto de mistério pois apenas "ouvimos" a sua voz e sabemos que a sua vida é o resultado do evento catártico que une esses quatro seres.

Cada um é afetado de alguma forma pela sensibilidade eletromagnética, de forma semelhante a que Artur, o protagonista de Dezoito de Escorpião. O inglês de 1919 é o que mais sofre pois é o mais desconectado do fenômeno, enquanto o feiticeiro angolano é o mais conectado, tanto que entende seus dons como feitiçaria. Uma contradição bem colocada pelo autor. Surgem também outras reflexões sobre a ciência e a religião. Sobre a arte, não é meu forte, mas as visões pintadas pelo artista Ioannis Fiore, são lindíssimas. Dos detalhes das cenas mais comuns até os deslumbrantes quadros que trazem eventos cósmicos e abstrados de uma forma bela, apreciável e inteligível. Esta foi uma das melhores HQ nacionais que li até o momento. Uma peça maravilhosa!


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segunda-feira, 20 de março de 2023

Resenha #277 Espere agora pelo ano passado (Philip K. Dick)


"Espere agora pelo ano passado" é um romance do meu autor favorito Philip K. Dick de 1966 que aborda a viagem no tempo, uso de drogas e um inesperado aspecto político, que ficou bastante interessante sem perder a ironia típica do autor.

Acompanhamos o Dr. Eric Sweetcent em 2055, um médico especialista em transplantes de órgãos artificiais que é convocado para cuidar de Gino Molinari, o Secretário-Geral da ONU que tem a saúde muito frágil e está na corda bamba em uma guerra entre duas raças alienígenas. Os starman, de Lilistar, uma raça humanoide e beligerante de seres acinzentados e os reegs, seres insetóides de aspecto repulsivo mas extremamente empáticos. Os reegs estão vencendo a guerra mas a Terra apoia formalmente Lilistar. Presos por um pacto, Molinari tenta evitar que a Terra se afunde ainda mais numa guerra perdida. Enquanto isso, os starman criaram uma droga altamente viciante para usar como arma de guerra contra os reegs. A JJ-180, ainda experimental, faz o usuário retornar ao passado, porém em Eric o efeito é o inverso, viajando para o futuro. Contudo, não há efeito, ou quase um superpoder, que mude a essência patética de Sweetcent. Com sua esposa Kathy, formam o típico casal philipkdiciano. Uma mulher controladora e de personalidade forte e um homem dependente, depressivo e, em outras palavras, um reflexo do próprio autor e seus relacionamentos.

"Espere agora pelo ano passado" foi o segundo lançamento da Suma de obras, depois que a Aleph parou de publicar as obras novas do autor. Fico feliz de ver tantas obras, inclusive algumas mais obscuras como esta. Ela é bem representativa do autor, com sua ironia e toques autorreferenciados nos personagens de Eric e Kathy, e além disso, aqui há uma boa trama politica para além da viagem no tempo. Outra curiosidade é que antes de "A Máquina do Tempo" de H. G. Wells, as viagens no tempo na Ficção Científica eram imaginadas como viagens na percepção, sonhos ou hibernações induzidas. Dick faz uma releitura dessas viagens com a viagem no mundo das drogas sintéticas, que foram parte de sua vida.
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segunda-feira, 13 de março de 2023

Resenha #276 Ancestral (Israel Neto)


"Ancestral" é uma space ópera afrofuturista escrita por Israel Neto e lançada pela editora Kitembo em 2021. O primeiro volume entrega uma história ágil que caminha com habilidade por uma construção de mundo complexa abrangendo vários planetas do sistema solar de Rá. São os mundos de Orum, Kemeti, Europe, Inca e Oceânica que juntos formam a presença humana no sistema solar. Em Ancestral, não viajamos para um futuro distante, mas para um longínquo passado ancestral onde a Terra foi povoada por civilizações que hoje consideraríamos avançadíssimas, numa pegada de "Eram dos Deuses Astronautas?" mas carregada com a estética e temáticas afrofuturistas, ou seja, olhando para o futuro mas sem esquecer o passado. Isso está impresso no dilema e no conflito civilizacional no sistema de Rá. 

O corpo central do sistema Rá, está chegando ao ponto onde não conseguirá mais sustentar a vida no sistema e colapsará. Tal crise é irreversível mas isso não significa que os povos cessariam seus conflitos para resolver a questão. Acompanhamos um grupo de cientistas e diplomatas, principalmente de Orum, dedicados a desenvolver a tecnologia de viagem que permita o êxodo para o planeta Terra. Nessa aventura ágil, o autor foi bem habilidoso e conciso na ambientação de cada um dos planetas visitados, não deixando dúvidas quanto as referências usadas. Até porque este é apenas o primeiro volume da saga e logo entendemos que o foco logo se voltará para a Terra, destino da grande viagem.

A leitura é bastante fluída e vai agradar o leitor que gosta de uma boa aventura, mas nem tanto o que deseja tramas densas e carregadas de detalhes. O aspecto introdutório e o gancho no final é o que se pode esperar de um primeiro volume de uma saga, mas a história consegue se concluir e dar algumas respostas sem parecer que o livro acabou no meio. Agora é aguardar o segundo livro! 


  

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segunda-feira, 6 de março de 2023

Resenha #275 Não Verás País Nenhum (Ignácio de Loyola Brandão)


"Não Verás País Nenhum" é um clássico das distopias e da literatura brasileira. Para um leitor brasileiro que gosta de distopias, esta obra é presença certa em qualquer lista decente sobre o assunto. A obra carrega os elementos mais comuns das distopias mas com uma profundidade e um conhecimento do Brasil excepcionais. Temos um Brasil corroído pela corrupção (ou apenas governado como o habitual?), para a dominação e não sob princípio do bem comum.

Acompanhamos a história de Souza, que tem uma vida pacata num escritório, fazendo trabalho burocrático. Uma vida no trajeto casa-trabalho-casa, onde vive com sua pacata esposa Adelaide. Então, um furo surge em sua mão. Pausa para falar de que Brasil é este em que Souza vive: Basicamente a Floresta amazônica transformou-se num deserto e as consequências climáticas, para a metade sul do Brasil são as piores possíveis, afinal a Amazônia não é chamada de "Pulmão do Mundo" a toa. As bacias hidrográficas e biomas brasileiros secaram. O Brasil, outrora grande produtor da agricultura, passou a racionar água ao extremo, desenvolvendo gêneros alimentícios baseados em química para alimentar a população. O calor nunca mais abandonou o clima de São Paulo (local onde passa a história) onde os topos dos prédios calcinam qualquer coisas esquecida neles e grupos de andarilhos com a pele escamada vagam sem forças para correr atrás de água.

Voltando a Souza: Sua vida entra em uma espiral de queda, que o vai levar para uma jornada interna de autoconhecimento, autocritica, autocomiseração. Idas e vindas de um homem covarde que foi levado pelo tempo dele. Essa jornada tem probabilidades de ser bem cansativa para o leitor. Brandão, tem um estilo reflexivo de conduzir o livro. Souza está reavaliando sua vida a todo estante, relutando em tomar atitudes, mas há vários momentos interessantes onde conhecemos mais da paisagem devastada desse Brasil minguado, seco por dentro e por fora. Há cenas que destoam com uma crueza desconcertante e certamente vão ficar rodando na sua cabeça enquanto os monólogos de Souza dissecam o Brasil, com secura e ironia. É interessante ver o Brasil ser pintado nessas páginas como uma nova era de ditadura após um lapso de democracia. Vale lembrar que o livro foi escrito em 1981, em plena ditadura civil-militar, mas a história passada no início do século 21 soa hoje como um sonho estranho da nossa atualidade. Alías, toda boa distopia consegue capturar a essência podre e imutável dos piores momentos da modernidade, Brandão conseguiu capturar tudo isso no Brasil, montando um cenário completamente diferente e bizarro, que aos poucos vai ficando cada vez mais familiar. Essa familiaridade é o Brasil.  


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