segunda-feira, 29 de maio de 2023

Resenha #287 Fome (Tibor Moricz)



"Fome: onde restar vida, haverá fome" de Tibor Moricz é uma distopia brasileira de 2008, editada pela extinta Tarja Editoral. O romance é uma junção de contos que fazem sentido isolados, mas que juntos formam uma narrativa maior também. Hoje o nome que damos a essa forma é romance Fix-Up, e um exemplo desses é Território Lovercraft de Matt Ruff. Contudo o paralelo que quero traçar com esta obra e outro. 

O mundo retratado em Fome é de completa falta de esperança. Não há explicação para o desastre que o mundo se tornou. Apenas que não há mais comida, vegetação, fauna e a população está quase toda morta e os vivos se canibalizam para sobreviver enquanto houver outros iguais para devorar. Cada personagem é acompanhado em um conto diferente e vão contando uma história única da civilização humana regredindo ao estado mais puro da animalidade. Um caçador, um colecionador de livros, um filho zeloso, um crente e um sacerdote são alguns dos personagens que movimentam a trama que vai por um caminho completamente crítico da religião, que aparece como uma forma sofisticada de explorar a única fonte de alimento dos humanos que são os próprios humanos.

Distopia é um subgênero bem comum na literatura e muitas são as suas obras, muitas delas já resenhadas aqui no blogue. Poderia traçar muitos paralelos com outras distopias com mundo arrasado mas acho que o contraponto ideal é com Terceira Expedição de Daniel Fresnot. Enquanto uma segue o relato de um catarinense que consegue sobreviver nos mostra um caminho da esperança surgida da pior adversidade imaginável em época de Guerra Fria, Fome vai pelo caminho oposto. Inclusive, em um dos momentos chave da obra de Fresnot, mostra que no que fora São Paulo, tornou-se algo parecido com o centro urbano que vemos na obra de Tibor Moricz. 

Outro destaque da obra vai para a escrita seca e sarcástica do autor que acentua ainda mais a aridez material e espiritual dos personagens mesmo, ou melhor dizendo, principalmente quando o elemento religioso entra em cena. É uma obra para corações fortes e que vai deixar os religiosos de cabelo em pé. Vale avisar que as cenas fortes tem gatilhos de violência, e podem parecer que não precisariam estar ali, mas é uma característica da escrita do autor essa estética crua e condiz com o tom da obra, ou seja, não são cenas gratuitas. 
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segunda-feira, 22 de maio de 2023

Resenha #286 A droga diabólica (Clare Winger Harris)



"A droga diabólica" de Clare Winger Harris é uma das histórias da autora que surgiu nas antigas revistas pulp dos anos 1920 nos Estados Unidos e que está sendo celebrada pela editora Cyberus com vários lançamentos de contos na Amazon. Este é um dos contos que foram lançados e o segundo da autora resenhado aqui.

Em A droga diabólica acompanhamos um cientista o Dr. Hamilton, que com apenas 26 anos, gostaria de desposar uma dama mais velha, com seus 32 anos. Então, ele desenvolve uma droga capaz de fazer com que o envelhecimento da dama pare por alguns anos até que eles tenham idades pareadas. Sinceramente, parece um tanto absurdo e de fato é, mas a proposta do conto fala muito sobre a época em que foi escrito. Lendo o conto hoje não deixa de ter o seu charme e se o leitor embarcar na proposta, vai encontrar um dos contos mais divertidos da autora, com um final digno de um pulp de sua época. Mas não se engane com essa capa, que mostra o típico cientista vilanesco, acho que você vai gostar tanto do Dr. Hamilton quanto possível!   
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terça-feira, 16 de maio de 2023

Resenha #285 Crônicas de Le Chevallier: Persa e as três sementes de tâmaras (A. Z. Cordenonzi)


"Persa e as três sementes de tâmaras" é minha terceira leitura d'As Crônicas de Le Chevalier. Uma série de quatro contos que expandem a obra principal do personagem e estão de graça para baixar na Amazon. São contos que tanto expandem o universo quanto servem de apresentação dos personagens. Cada conto também faz uma referência a literatura e personagens reais como é comum nas obras steampunks. Aliás, é uma das coisas que mais gosto deste subgênero: a capacidade de brincar e manipular o passado tanto historiográfico quanto literário.

Neste conto temos uma aventura solo do Persa, o agente do Bureau, fiel amigo do Le Chevalier, que se vê obrigado a ir em uma missão sozinho pois o maior agente da França está se recuperando de uma doença. Persa precisa investigar um caso de assassinato num regimento de legionários na Tunísia, terra natal do nosso protagonista. É muito bacana ver como o personagem, acostumado a ser os músculos quando em dupla com Le Chevalier, tem que se virar agora como cabeça pensante da investigação. Não que o Persa seja burro, mas é um sujeito cheio de manias, e por vezes parece fútil, mas vai mostrar seu outro lado e isso ajuda a dar mais profundidade a ele.

Referências são explicadas num texto no final pelo próprio autor. Uma ideia bacana pois fica como uma conversa após o conto. As referências ficam evidentes quando reveladas mas a ideia de ir descobrindo durante a leitura me compele a não as revelar e deixar para o leitor. Recomendaria mesmo que o conto não fosse grátis, então aproveite enquanto tem! 
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segunda-feira, 8 de maio de 2023

Resenha #284 Asilo nas Torres (Ruth Bueno)


"Asilo nas Torres" é uma obra obscura da ficção científica brasileira escrita por Ruth Bueno e lançada em 1979 pela editora Ática. Minha versão é do Círculo do Livro, antigo clube de livros por assinatura com obras em capa dura muito comum de encontrar em sebos pelo Brasil.

A obra é uma distopia narrada de forma fragmentada, por múltiplos pontos de vista ora por personagens sem nome, personagens com nome que são apenas uma letra ou, também, duas personagens chamadas Salomé e Assunta. A obra não é dividida em capítulos, mas em inserções dos personagens que descrevem algum aspecto da vida nas torres em Saturno. Não é o Saturno que conhecemos, mas um lugar impreciso e que a autora descaradamente não tenta explicar. Boa parte da obra não se trata de alguma trama em específico, mas várias passagens que formam um mosaico da vida nas torres.

Tiramos deste mosaico, um sistema de prédios onde se concentra a vida da administração pública deste mundo. Um local com uma burocracia rígida, voltada para a manutenção da própria existência e não das pessoas, por exemplo, nelas o ar é mantido em temperatura tão baixa para a manutenção das máquinas que as pessoas tem dificuldades de permanecer trabalhando perto delas. A organização burocrática é tomada de conchavos e sem amizades e laços fortes, qualquer um é levado ao ostracismo e vira mais um entre tantos funcionários. A estrutura patriarcal é especialmente cruel com as mulheres, principalmente as de pensamento minimamente livre, não obstante, as únicas que tem nomes próprios na obra.

A leitura não é fluida, ainda que o romance seja curto (128 páginas) demorei mais de uma semana para terminar a leitura. Acredito que o paralelo da cidade de Staturno, na obra de Ruth, e a cidade de Brasília, a torne mais interessante de se saber antes da leitura e quem sabe, a torne mais agradável. Nada que vá deixar a obra fácil, mas certamente não me arrependi de ter lido.
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segunda-feira, 1 de maio de 2023

Resenha #283 O Fruto Maduro da Civilização + O Éter Inconsútil (Ivan Carlos Regina)


"O Fruto Maduro da Civilização + O Éter Inconsútil" é um daqueles livros que se torna presença obrigatória na estante de quem gosta de ficção científica brasileira, por dois motivos. Primeiro, pela relevância do autor para quem acredita que a FC escrita aqui pode ser mais madura, com mais personalidade. Segundo reúne em uma publicação dois livros, que celebram a obra de Ivan Carlos Regina. 

Neste único impresso encontramos dois livros, sem contra-capa, apenas as duas capas, bastando inverter para começar a ler o outro livro. Encontramos assim, O Fruto Maduro da Civilização, obra de 1993 que reúne contos que investem no experimental e no humor, destoando completamente do que se caracterizou a ficção científica tanto aqui, quanto no exterior. Já o O Éter Inconsútil é uma reunião de contos que o autor publicou ao longo de sua carreira. As duas obras juntas são praticamente uma antologia do que o autor escreveu na ficção científica, uma vez que o autor não lançou outras obras do gênero, tendo apenas contos publicados em diversos lugares. Esta obra é fruto da mesma curadoria (Nelson de Oliveira) que nos presenteou com Fanfic, de Bráulio Tavares, pois é uma forma prática de acompanhar a produção do autor sem ter que catar publicações soltas e muitas vezes esgotadas, quando não raras.

Quanto ao estilo do autor, é indiscutivelmente peculiar. O uso do humor, sempre pelo caminho filosófico, as críticas certeiras a sociedade do consumo, da propaganda, da estupidez da civilização. Seu Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Brasileira (de 1988) propõe um upgrade para a ficção científica brasileira, para que ela abrace o Brasil através do modernismo. Desde então, tornou-se incontornável e essas duas obras mostram o manifesto na prática. Essas características encontram mais concentradas no primeiro livro, e mais diluídas na questão da experimentação mas ainda muito presentes. 

O Éter Inconsútil trilha pelo caminho aberto por O Fruto Maduro da Civilização, que por sinal, é bastante curto e deixa saudades, que são satisfeitas pelo segundo livro. Uma vez que são mais de quarenta contos, somando os dois livros e se encontram praticamente todos os contos de FC do autor, não farei uma parte comentando conto a conto, mas praticamente resenhar o autor e recomendá-lo, pois é exatamente o que o leitor vai encontrar nessa obra. Vá fundo e divirta-se.


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