segunda-feira, 28 de junho de 2021

Resenha #189 - Contos dos Orixás (Hugo Canuto)




"Conto dos Orixás" de Hugo Canuto, começou com uma brincadeira onde o autor desenhou supostas capas de revistas de heróis da Marvel, onde, ao invés da mitologia Nórdica, os personagens seriam baseados na mitologia Ioruba (a saber uma das mais influentes nas religiões de matriz africana no Brasil). As capas homenageavam o traço clássico de Jack Kirby, fazendo alusões as capas clássicas dos anos 1970, a era de prata dos quadrinhos nos EUA. A atenção que as capas despertaram incentivaram o autor a criar uma história e uma campanha no Catarse para tirar o projeto do papel e colocar, bem no papel! O projeto de financiamento foi um sucesso tremendo, chegando a terceira edição com facilidade. Felizmente para mim, que perdi os dois primeiros financiamentos, consegui participar do terceiro. E hoje vamos falar sobre como ficou o trabalho!

A primeira coisa que chama a atenção é como Hugo conseguiu ao mesmo tempo transformar uma homenagem a Jack Kirby em algo perceptível e ao mesmo tempo colocou elementos originais. O estilo colorido e vibrante combinou muito bem com as divindades iorubas. A história tem como herói principal Xangô, senhor dos trovões, que seria o equivalente a Thor (bem, vamos parar com as comparações). A mitologia ioruba é muito rica e tem uma cosmogonia muito bonita e complexa para abarcar um universo inteiro de histórias. Depois de uma introdução rápida, temos conhecemos o vilão Ajantala e a seu exército que chama de Manada, que destrói vilarejos impiedosamente e usando de magia para aumentar seu exército. Logo ficamos sabendo que ele busca uma cidade sagrada coberta de ouro mas sua localização é um segredo. Os sobreviventes deste último ataque buscam a cidade de Oyó Ilé, capital de um poderoso império, auxílio para se proteger da Manada. Ai conhecemos o herói principal, o Rei Xangô e a Rainha Oyá que aceitam ajudar os sobreviventes daquele povoado.

Não convém avançar demais na história, posso adiantar que ela é simples, com heróis e vilões bem delimitados, como eram as histórias da Era de Prata, bem alinhado com o que entendemos por histórias em quadrinhos. A profundidade que encontramos está na imersão na mitologia ioruba que é apresentada com simplicidade e competência nesta HQ. É redundante falar de representatividade sobre este projeto tanto para os negros quanto para quem tem algum envolvimento com alguma religião de matriz africana, pois acredito que estes tem tudo para apreciar a HQ, contudo, é válido para qualquer um que aprecia histórias em quadrinhos pois nos oferece um mundo novo para explorar e admirar. Espero que o projeto ganhe novos números o quanto antes!   

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segunda-feira, 21 de junho de 2021

Resenha #188 - Por uma vida menos ordinária (Lady Sybylla)


"Por uma vida menos ordinária" de Lady Sybylla, é a segunda novela da saga da Amaterasu que iniciou em "Deixe as estrelas falarem" (que já lemos e resenhamos no blogue), acompanhamos Rosa Okonedo, capitã envolvida num dilema que divide sua preocupação constante com a tripulação e a vontade incontrolável pelo perigo. Essa vontade é despertada quando em visita a uma velha amiga, ela se depara com uma corrida ao tesouro desconhecido que pode render um lucro imenso ou levar a nave e a tripulação para a ruína.

Nesta segunda história a autora fez uma abordagem completamente diferente da primeira. Em "Deixe as estrelas falarem" temos a narração em primeira pessoa na visão de Rosa, numa história mais intimista focada na capitã e que demora mais para engrenar no enredo. Aqui temos um início empolgante com uma cena do meio da história, instigando a curiosidade do leitor, depois retorna para narrar os momento que levaram todos até ali, para só então, concluir. Particularmente eu preferi essa estrutura, que valorizou os outros membros da tripulação deixando cada um ter seu momento de brilho. O efeito mais bem vindo é a vontade de ler cada vez mais histórias com a Amaterasu. A escrita continua segura e habilidosa. Gosto de imaginar essa série vários em pequenos livros colecionáveis como os Perry Rohdan, mas com um universo que enxerga o futuro com muito mais lucidez. Que venham mais!  
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segunda-feira, 14 de junho de 2021

Resenha #187 - As Crônicas de Marte (George R. R. Martin e Gardner Dozois)


"As Crônicas de Marte" é uma coleção de contos organizada por George R. R. Martin e Gardner Dozois. Marte é o cenário de todos os contos e é um assunto que sempre me encantou, ainda que seja pelos motivos diferentes que os leitores mais antigos. George R. R. Martin explica bem, na introdução, o sentimento de fascínio que o planeta gerou nos primeiros leitores de Ficção Científica. Marte ambientou histórias de civilizações antigas, invasões alienígenas, antes das primeiras sondas, as Mariner, nos anos 1960 e 70 acabarem com qualquer aura de magia e o sonho de encontrar vida em Marte, da mesma forma que em Vênus e Mercúrio. George R. R. Martin cita a trilogia marciana de Kim Stanley Robinson como a obra mais relevante escrita sobre Marte após as descobertas do início da corrida espacial. Obra que em nada relembra os tempos de ouro da FC. O objetivo da coletânea é trazer histórias que retomem aquela inspiração e imaginação que havia sobre o Velho Marte, o planeta conforme era sonhado antigamente. Confesso que não partilho do mesmo fascínio, pois não vivi aquele tempo, apesar de adorar As Crônicas Marcianas de Ray Bradbury, o Marte de Kim Stanley Robinson e de Andy Weir me atraem mais. Vamos ver conto a conto, como ficaram essas histórias. 

"Sangue Marciano" (Allen M. Steele) - Acompanha Ramsey, um guia turístico nascido e criado em Marte em um trabalho para o astrobiólogo Dr. Al-Baz que veio em busca de uma amostra de sangue de um shatan, aborígene original de Marte, para por a prova uma teoria. O conto prende pelo protagonista esperto e pela contraposição aos colonos de Marte e pela composição do povo original que ficou interessante. Um paralelo óbvio mas bem construído dos tempos de colonização.

"O patinho feio" (Mathew Hughes) - Fred Mather é um arqueólogo que trabalha para a companhia de mineração New Ares em Marte, preparando o terreno para grandes máquinas (Leviatãs) que separam os minérios, terra e insumos orgânicos de antigas cidades de marcianos autóctones. Porém o real interesse de Mather é conhecer aquela civilização que foi extinta quase que ao mesmo tempo da chegada dos terráqueos. Mather faz descobertas que o colocam em constante vigilância de seu chefe, Red Bowman. O conto tem um final aberto e quase decepcionante mas a exploração e a imaginação para essa civilização marciana compensam e salvam o conto. É o segundo conto consecutivo que segue a linha de paralelo entre a colonização de Marte com a colonização do continente americano.

"O acidente do Mars Adventure" (David D. Levine) - Conto narra a história do Capitão William Kidd que prestes a ser executado por pirataria recebe um perdão real, contanto que faça uma missão exploratória até Marte, junto com o o filósofo Dr. Sexton em um barco movido a balões, velas e remos! A premissa chega a ser engraçada em comparação com o que sabemos hoje mas é muito coerente com o que se sabia há mais de um século, e também com o espírito aventureiro dos colonizadores. Neste conto não temos o ele o elemento crítico como das duas primeiras histórias o que deixou o conto uma aventura engraçada mas pueril.  

"Espadas de Zar-tu-Kan" (S. M Stirling) - O conto se passa numa Marte ocupada por uma maioria de nativos em choque cultural com os humanos colonizadores. Seguimos Sally e Teyud, uma humana e uma marciana coerciva (mercenária) em uma missã de resgate a um colega de quarto de Sally, um cientista chamado Beckwoth. Em meio a aventura, ricamente narrada, temos um cenário que parodia os filmes orientais e bons momentos de ação. Muitos contos dessa "velha Marte", tem o pano de fundo do colonialismo e do choque cultural, talvez o autor tenha apenas trocado o choque cultural com indígenas da América do Norte pelos chineses atualmente. Seja como for, o conto vale pela ação e é bem escrito.

"Bancos de areia" (Mary Rosenblum) - O conto tem como protagonista um menino com problemas cerebrais e é pelo prisma dele que temos que coletar informações para entender o mistério do conto. A leitura exige mais atenção do leitor. O que se perde em fluidez ganhamos em satisfação a medida que vamos entendendo o desenrolar do conto. Difícil não lembrar do Charlie de Flores para Algernon, pois mesmo não sendo um relato em primeira pessoa, nem epistolar, temos a relação conflituosa de quem é tido apenas como um "retardado". Jorge, um dos mineiros, tenta traduzir o que Maartin sabe mas a incompreensão é a tônica do conto, tanto entre Maartin e as pessoas, quanto da sociedade, voraz por riquezas e as verdadeiras riquezas do local. 

"Nas Tumbas dos Reis Marcianos" (Mike Resnick) - Depois de um conto mais complexo, temos uma aventura arqueológica leve e fluida em busca de uma tumba secreta de um rei antigo milenar. Acompanhamos Scorpio, um mercenário da Terra e seu amigo venusiano Merlin, que apesar de andar sob quatro patas, é um telepata inteligente. Ambos aceitam um trabalho de Quedipai, um estudioso marciano atrás de uma tumba que apenas ele acredita existir de verdade. O grosso do conto é uma aventura no melhor estilo Indiana Jones espacial. A interação entre os personagens é divertida e faz as 42 páginas passarem muito rápido. 

"Saindo de Scarlight" (Liz Wiliams) - Acompanhamos Zuneida Peace, uma caçadora de recompensas que se disfarça de homem (Thane) e aceitou o trabalho de Houlsen para recuperar Hayfre, uma princesa de uma tribo, que era mantida trancafiada por Houlsen até quem um feiticeiro de Ithiss a raptou. Nessa perseguição ela encontra várias surpresas em um mundo que poderia encaixar-se em qualquer fantasia mas apesar das liberdades que a autora se dá em uma coletânea de FC, o conto se sobressai pela boa construção dos personagens. Zuneida é forte mas não é uma guerreira treinada ou especialmente habilidosa mas uma mulher que se vira da maneira que pode e isso se molda organicamente a história.

"Os manuscritos do fundo do mar morto" (Howard Waldrop) - Conto relata uma viagem de forma epistolar. Tanto de quem faz a viagem no presente como trechos e comentários sobre uma viagem passada. A vantagem do relato em primeira pessoa é muito bem explorada pela parcialidade da visão do protagonista que não sente necessidade de se descrever, e isso só acontece no final o que torna tudo muito surpreendente e satisfatório. Conto sucinto, sincero e elegante.

"Um homem sem honra" (James S. A. Corey) - Conto com narração epistolar, acompanhamos o relato  do capitão Lawton para a Sua Majestade de uma aventura, um embate com o capitão Smith dos mares do Atlântico até dos desertos marcianos atrás de um metal mais precioso que ouro. A escrita epistolar é coerente com as aventuras planetárias, aliás é a proposta da antologia. O conto esconde muitos ganchos de outras aventuras, nos deixando com vontade de saber mais, mesmo sem ainda terminar essa aventura, e consegue marcar bem os coadjuvantes como o jovem Carter, La'an que é de uma das espécies de Marte e da valente Carina Meer. O conto ainda deixa um questionamento sobre o que é a Honra e caráter, uma vez que Lawton é o desonrado que salva o dia, enquanto Smith que segue um estrito código de honra, é capaz de cometer atrocidades. Questionamento que expõe, a meu ver a contradição e a hipocrisia do pensamento europeu no período colonial.

"Escrito no pó" (Melinda M. Snodgrass) - Conto é um drama familiar transposta para um cenário de Ficção Científica. Acompanhamos Tilda, uma menina dividida entre a obrigação do legado da família e a vida que ela deseja. Stephen, avô de Tilda, é um viúvo amargurado pela solidão e pela perspectiva de ver seu legado (a fazenda) perdido por falta de quem o leve para frente. Seu filho Kane é casado com Noel, um militar e estão em Marte para ficar com Stephen após perder Catherine (mãe de Kane), e sua segunda esposa Mikaiko. O que era para ser provisório acaba dividindo o casal depois que Kane, influenciado pelo pai, decide que todos não devem criar raízes em Marte. Além da família dividida, pois Noel e Tilda querem sair de Marte e Stephen e Kane querem a vida da fazenda, temos os sonhos de Tilda que levam a uma cidade proibida onde as pessoas morrem e voltam nos sonhos dos vivos. A narrativa constrói os personagens com profundidade pelos seus desejos e conflitos, e direciona o leitor até o ápice onde a decisão de Tilda. Outro destaque é o casal homossexual, Kane e Noel, que é retratado de forma simples como deveria ser sempre.

"O canal perdido" (Michael Moorcock) - Este conto tem um clima de western muito envolvente, pela solidão do protagonista que teve de se virar pois a outra alternativa era a morte. Então, para Mac roubar e matar é apenas um meio de não morrer. Temos um herói improvável escolhido entre eras de possibilidades para uma missão de extrema importância. A história tem um ritmo irregular pois tem um infodump que toma 1/3 da obra. O conteúdo é interessante mas não deixa de ser infodump por causa disso. Ainda assim, o conto vale a leitura porque o estilo do autor é muito agradável. Falando nele, o autor é uma lenda na FC mas é incrível que tenhamos tão pouco dele traduzido para a língua de Camões, além da sua série de Fantasia Elric.

"A pedra do sol" (Phyllis Eisenstein) - Aqui a autora foca no relacionamento familiar como em "Escrito no pó", mas aqui disfarçado de escavação arqueológica. A procura de Dave, quando chega a Marte, é por seu pai, e quando ele descobre que ele há havia falecido decide terminar o último trabalho de seu pai com a ajuda de Rekari, um marciano nativo que estava com seu pai nos seus últimos momentos. As revelações e o desenvolvimento da história são sensíveis e recompensadores par ao leitor.

"Rainha do romance barato" (Joe R. Landsdale) - Outro conto focado no relacionamento familiar. Tal qual no conto anterior, o pai da protagonista está morto aqui ele morre na frente dela enquanto estavam em uma missão de transportar vacinas contra uma doença pela área congelada de Marte. Eles nos são apresentados apenas pelos sobrenomes (King). A menina King, decide levar o corpo do pai e precisa passar por provações para sobreviver e salvar as vidas das pessoas que precisam da vacina. Apesar de morto o pai King aparece o tempo todo nas lições e treinamento que refletem nas ações da filha. É como seu seu pai só pudesse morrer mesmo depois que a menina sobrevivesse. Uma boa aventura e, de brinde, uma reflexão sobre a função dos nossos ritos de passagem. Ah e a filha King ainda consegue tempo para encontrar segredos milenares de Marte. Vale a leitura!

"Marinheiro" (Chris Roberson) - Outro conto de piratas em Marte. Aqui temos menos galhofa e alguma tentativa de fazer um cenário mais coerente no "Velho Marte". Os piratas navegam pela areia e convivem com a degradação dos canais de água que agora são bolsões isolados. Esses lagos são basicamente como as ilhas na Terra. São porções onde a civilização ainda respira por aparelhos. Nesse cenário o pirata humano, Jason Carmody (o único "pele-rosada" em Marte), a bordo do seu Argo, luta para ser aceito enquanto tenta ajudar refugiados de uma nação autoritária do norte que estão para serem vendidos para a nação plutocrática do sul. A questão é levada a cidade livre dos piratas que leva a um confronto com um antigo desafeto de Jason. O cenário riquíssimo apresentado pelo autor deixa um gosto de querer ler mais aventuras neste mundo, ironicamente a mesma sensação deixada pelo outro conto de pirata dessa antologia.

"A ária da rainha da noite" (Ian McDonald) - COnto que encerra com chave de ouro a antologia. Escrito pelo autor de Brasyl (que infelizmente foi mal recebido por aqui) que nos mostra personagens cativantes em cenários inusitados. Acompanhamos dois músicos lorde Jack, um excelente músico em decadência e seu fiel Faisal, que além de tocar piano, também é um faz-tudo e muleta psicológica de Jack. Acompanhamos o ponto de vista de Faisal. O estilo de vida de Jack deixou ambos falidos e agora para pagar suas dívidas eles topam fazer shows para soldados que estão na linha de frente de uma guerra e acabam em meio ao conflito sangrento lutando para sobreviver. A relação dos dois é um dos pontos altos do conto. Faisal tem uma atração que se divide entre a admiração pelo talento e a sexual por Jack, que por usa vez consegue enxergar uma beleza na guerra que Faisal não vê e fica deprimido por saber que nunca terá a mesma percepção que Jack. Somando isso ao final surpreendente temos uma visão da guerra interessante, de alguém que não está diretamente vinculado a nenhum dos lados.

Neste vídeo que fiz no Diário de Anarres no YouTube, eu falo do livro de forma geral:


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quinta-feira, 10 de junho de 2021

Ficção Científica e Brasil: um filme de amor na metade (Davenir Viganon) - OPINIÃO

Texto originalmente publicado no blogue da editora Caligo, na Coluna Asas, para qual escrevo regularmente. 

A literatura de Ficção Científica e o Brasil têm um caso de amor complicado. É como naqueles filmes mamão com açúcar. Sabemos que os dois se merecem e, uma vez se conhecendo, se apaixonariam e viveriam juntos, mas passam por uma série de problemas aparentemente bobos. Eu quero acreditar que esse filme existe e com um final feliz por acontecer.

Os motivos para que essa mistura ainda pareça tão atrativa ao grande público quanto uma picanha grelhada batida no liquidificador com banana ou salsicha com leite condensado, já foram pensados antes, e tentarei condensá-los em três.

Primeiro, o Brasil tem uma tradição literária atrelada ao realismo e ao romantismo, que se distanciam da FC, que por sua vez, é mais filha do fantástico. Segundo, a ideia de que pelo Brasil não ser um polo desenvolvedor de alta tecnologia e vivermos a tecnologia apenas na ponta que consume – de segunda mão – nos coloca em desvantagem ou até incapazes de imaginar, debater ou encantar como os autores de FC gringos fazem. Em outras palavras, o velho complexo de vira-latas. Terceiro, o próprio leitor brasileiro que gosta de FC (lembre-se do nosso filme, ainda não há amor aqui), ainda ser muito apegado aos autores clássicos estrangeiros (AsimovClarkeHeinlein) a ponto de não poder/querer acompanhar sequer, os autores estrangeiros atuais, menos ainda brasileiros de FC.

Quer mais drama que impede essa união feliz? Ainda herdamos os preconceitos que a Ficção Científica enfrenta nos EUA, de que se trata de uma literatura menor que nunca deveria ter saído das revistas pulp dos anos 20 – onde Hugo Gernsback cunhou o termo Science Fiction. Sendo assim, a FC é uma tradição literária importada do mundo anglófono – Estados Unidos. Apreciá-la seria vira-latismo? Nossa, parece que esses dois nunca vão ser felizes, meu deus ex-machina! Não temam, românticos e fantásticos amigos. As respostas, como em todo filme mamão com açúcar, estavam na cara de todo mundo o tempo todo.

A Ficção Científica é uma das respostas em si, para quem tiver o olhar adequado. É uma forma de enxergar mundos possíveis, lindos, terríveis, ambíguos. Visões  potencialmente libertadoras da imaginação. Aquelas que nos impedem de aceitar a  realidade repulsiva que nos permeia como algo inescapável ou até aceitável. É um poder de dar um primeiro passo importante para afastar a tacanhice comum do vira-latismo. Entendeu, meu Brasil brasileiro? Os óculos podem até ser importados, mas os olhos não.

Ivan Carlos Regina, com muito mais vigor e habilidade, aborda essa relação no seu Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Brasileira (1988), na qual reproduzo apenas alguns trechos saborosos.

Precisamos deglutir urgentemente, após o Bispo Sardinha, a pistola de raios laser, o cientista maluco, o alienígena bonzinho, o herói invencível, a dobra espacial, o alienígena mauzinho, a mocinha com pernas perfeitas e cérebro de noz, o disco voador, que estão tão distantes da realidade brasileira quanto a mais longínqua das estrelas. […] Queremos despertar o iconoclasta que jaz em todo peito brasileiro.

Morte aos adoradores de máquinas. Um caipora verde amarelo devora hambúrgueres, destrói satélites, deglute armas e destroça tecnologias. Um índio descerá de uma estrela colorida brilhante. 

Os futuros pioneiros dessa aguardada FC já estão por ai escrevendo, publicando, querendo encontrar você, caro leitor, desse meu Brasil brasileiro, para fazer esse filme ter um final bem mais criativo que uma comédia romântica enlatada. Quem sabe, algo mais parecido com um índio descendo numa estrela colorida brilhante.

Davenir Viganon

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segunda-feira, 7 de junho de 2021

Resenha #186 - O Caçador Cibernético da Rua 13 (Fábio Kabral)


"O Caçador Cibernético da Rua 13" de Fábio Kabral de 2017 é o primeiro romance de Macumbapunk, (no termo criado pelo próprio) que além de escrever também o divulga - Recomendo alguns vídeos no próprio canal do autor para saber mais. O que posso adiantar é como a construção do mundo aqui faz a diferença. A história se passa totalmente em Ketu 3, um lugar reconstruído após uma invasão alienígena onde vive um povo melaninado que sobreviveu após expulsá-los. A magia e a tecnologia encontram uma mistura que enche a imaginação de imagens vibrantes. Os elementos iorubás e do cyberpunk foram conectados com maestria pelo autor. A cidade cyberpunk como útero podre da civilização, agora floresce pela magia dos ancestrais, mas não sem seus problemas.

Acompanhamos o caçador João Arolê que vive amargurado pelos seus atos do passado a medida que vai reencontrando antigos amigos e inimigos. A história tem muitos retrocessos na juventude de Arolê que remontam seu passado sem pressa. Esses retornos são tão recorrentes, fonte de algumas das criticas negativas que já li por ai, que acabam por se tornar o grosso da história. Arolê é um èmi ẹjẹ, que é o nome dado aos que nascem com o "sangue espiritual" dos antepassados, desenvolvendo poderes (teleporte e telecinése, por exemplo). Quando nascem em famílias ricas costumam ascender a fama e os que nascem pobres são arrancados das famílias e são criados para trabalharem em um esquadrão de elite de assassinos a serviço da Corporação Ibualama. A organização social de Ketu Três, segue a hierarquia do Canomblé, matriarcais e tendo as Casas de Axé, desenvolvidas como corporações.

É nesse esquadrão onde João Arolê conhece Nina Oníṣẹ e Jorge Osongbo, que a medida que aprendem a usar sua habilidades, passam a questionar as missões que recebem. No presente, Arolê busca fugir de seu passado e conhece Maria Aroni e Jamila Olabamiji, que também manifestam poderes, uma para curar e outra inconscientemente para destruir. Como era de se esperar o passado encontra João Arolê e a história no presente fica menos contemplativa, rendendo cenas de ação empolgantes, sem perder o gosto pela viagem a Ketu Três que é muito bem embasada e construída. O enredo é bastante simples mas que ganha muito com a construção do mundo sensacional que certamente rende mais histórias, como de fato já rendeu outra: "A Cientista Guerreira do Facão Furioso" que tem Jamila Olabamiji como protagonista.

"O Caçador Cibernético da Rua 13" vale pela construção de mundo e pela viagem sensorial que proporciona. É mais focado no protagonista, como se fosse um estudo do personagem, o que pode afastar os que gostam de enredos mais elaborados, ainda assim é uma leitura sensacional.


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