terça-feira, 26 de novembro de 2019

Resenha #112 - Cangaço Overdrive (Zé Wellington e Walter Geovani)

Cangaço Overdrive de 2018 é uma HQ nacional da Editora Draco roteirizado por Zé Wellington e uma equipe, em sua maioria cearenses, que traz uma fusão muito bacana da literatura de cordel com o cyberpunk

A história se passa em um futuro próximo, onde o nordeste brasileiro entra em colapso ambiental sendo praticamente abandonado pela população, restando alguns focos de pobreza extrema tendo no morro do Preã, uma comunidade no Ceará que resiste apesar dos constantes ataques da polícia e das maquinações de uma corporação chefiada por uma poderosa e tradicional família. Até que uma caixa misteriosa é interceptada pelo grupo de Rosa, líder da resistência armada do morro. O conteúdo da caixa é nada menos que o lendário cangaceiro Cotiara. Sua chegada vai desencadear uma escalada de morte e violência e uma pendência que dura mais de um século. 

A história consegue fundir os mundos de forma muito agradável. É uma história sobre o cangaço, mas levada ao futuro pela tecnologia. O narrador canta como num cordel com a mesma fluidez que fala de tecnologia. Tudo com bastante concisão, sem quadros desperdiçados fora da trama principal. Uma perseguição a um grupo de cangaceiros tornada numa batalha de ciborgues. As redes sociais aparecem de forma sutil mas tão fluída que quase não se percebe. O elemento de resistência do povo sofrido contra os interesses do capitalismo selvagem trouxe uma agradável lembrança ao filme Bacurau (lançado depois) e que dá força ao quadrinho pois aliou o regional ao universal, das lendas a nossa dura realidade. Apesar de não ser especialista, as artes agradam bastante, sendo a que menos me agradou foi justamente a capa. Leitura altamente recomendada!

Ficha Técnica, Cangaço Overdrive, editora Draco, 2018.
Roteiro: Zé Wellington
Layouts: Walter Geovani
Desenhos: Luiz Carlos B. Freitas
Arte Final: Rob Lean
Cores: Dika Araújo, Tiago Barsa e Mariane Gusmão.
Letras: Deyvison Manes.
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terça-feira, 19 de novembro de 2019

Resenha #111 - Deus da Fúria (Philip K. Dick e Roger Zelazny)

"O Deus da Fúria" (Dies Irae, 1976) é uma das obras de Philip K. Dick aborda a religião com mais profundidade tal como foi em "VALIS" e "Invasão Divina". Aqui o autor apresenta de forma mais clara a tese de um Deus que não é o da bondade e do amor, mas um deus de crueldade, fora dos padrões cristãos. Além de um romance, "O Deus da Fúria" é uma exegese do cristianismo.

A história se passa em um futuro pós-Terceira Guerra Mundial, onde mais de 90% da população mundial foi dizimada, restando muito pouco da religião cristã, que definha em número de adeptos e os sobreviventes vivem com poucos recursos em uma terra arrasada pela guerra radioativa. Desse mundo emerge uma nova igreja, que cultua o Deus da Fúria, personificado no homem responsável por toda essa destruição, Carleton Lufteufel.

O protagonista é Tibor McMasters, um artista membro da Igreja dos Servos da Fúria. Ele foi incumbido da missão de pintar um mural em uma igreja retratando o Deus da Fúria como figura central. Contudo, Tibor nasceu sem os braços e as pernas, e se locomove em uma charrete movida por uma vaca e utiliza dois braços mecânicos. A obra é basicamente a viajem de Tibor para encontrar pessoalmente o Deus da Fúria/Carleton Lutfeufel para se inspirar e começar sua obra. Antes da viajem de Tibor, temos muitas páginas para apresentar alguns personagens secundários, que iniciam o romance conversando com Tibor. Temos o padre Handy, da igreja dos Servos da Fúria; o Dr. Abernathy, um padre da antiga crença cristã e Peter Sands, um cristão convertido que utiliza de drogas alucinógenas para alcançar o divino e que ajuda Tibor em sua peregrinação. 

A leitura não é fácil, pois apesar das ideias principais não serem tão complexas de entender, as muitas referências durante os diálogos exigem um entendimento de cristianismo acima da média. A edição da Argonauta também não facilita pois não traduz os trechos em alemão que os personagens citam, o que seria útil para entender o tema complexo que tratam, apesar dos próprios personagens confessarem que não entendem o conteúdo de suas próprias referências. Algo semelhante ao clássico "Um Cântico Para Leibowitz", onde a ciência como sistema de conhecimento é perdida e seus fragmentos são apenas referencias exaltadas fora do seu propósito, mas em "Deus da Fúria" esse cenário não é usado para ressaltar a ciência, mas a própria religião como forma de chegar a deus. O livro é recheado de reflexões, debates teológicos de pontos de vista diferentes, que travam um pouco a história no primeiro terço parecendo que não vai levar a lugar algum mas isso muda no restante do livro. 

O Deus da Fúria foi um projeto que Dick começou e depois abandonou pois não tinha conhecimento suficiente sobre o cristianismo e foi retomado apenas quando Roger Zelazny, se entusiasmou com a história e mudou bastante o conteúdo final. O resultado foi uma obra prolixa e até difícil de digerir com pouco conhecimento sobre o cristianismo, pois é recheada de referências (influência de Zelazny), porém a ideia geral é martelada durante toda a obra. Recomendo para leitores avançados de Philip K. Dick e para leitores que já tenham feito alguma leitura mais profunda sobre o cristianismo.
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segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Resenha #110 - Amália atrás de Amália (Marco Aqueiva)


"Amália atrás de Amália" é uma das varias obras de Ficção Científica brasileira que estão sendo lançadas pela Editora Patuá na coleção Futuro Infinito. A novela de Marco Aqueiva é a uma daqueles histórias em que a forma é um elemento ativo da história. As 81 páginas da obra podem levar a errônea primeira impressão de tomá-la por uma leitura rápida de praia. Contudo, Amália atrás de Amália exige do leitor muita atenção aos detalhes, sensibilidade e principalmente pensar fora da caixa. A narrativa é não-linear o que pode desagradar o leitor casual, mas recompensa quem aceitar se aventurar por sua loucas páginas.

A história gira entorno de Amália, que vive em um Brasil futuro cercada de tecnologia (chips neurais, biotecnologia) e violência. A violência de uma ditadura, de perder tudo e ser perseguida por ser quem ela é mas nem Amália sabe quem é, porém sabe que quer sua filha. Racionalizar a história para além disso é parte do sabor de acompanhar Amália, e deixo para o leitor.

A estrutura é basicamente não-linear. Os capítulos são curtos e o autor não manda um manual para organizá-los, mas a sensação de fuga e perseguição é constante. Momentos inebriantes e líricos logo são cortados por alguma urgência o que confere agilidade a leitura mas a não-linearidade obriga a retornar capítulos inteiros atrás de algum detalhe perdido. Preferi ler todo o livro uma segunda vez para encontrar os detalhes que julguei pouco importantes, que na verdade ajudam a entender o geral, o que valeu muito a pena. O mistério é instigante, o que acabou me fazendo reler assim que virei a última página. Foi uma experiência bem atípica de leitura, pois não estou acostumado a esse estilo de literatura-arte e acabei apreciando bastante o estranhamento que me causou. Recomendo!
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terça-feira, 5 de novembro de 2019

Resenha #109 - Carbono Alterado (Richard Morgan)

"Carbono Alterado" de Richard Morgan é uma obra de 2002 que buscou revitalizar o cyberpunk trazendo seus elementos clássicos (alta tecnologia/baixa qualidade de vida num capitalismo selvagem na forma de um romance policial noir) sem se apoiar numa sátira de algo ultrapassado, ou podemos dizer também, que é um cyberpunk que se leva a sério. O livro veio ao Brasil na carona do lançamento da série na Nexflix.

A história segue Takeshi Kovacs, um Emissário (agente especial da ONU) treinado mentalmente para se adaptar a qualquer um dos mundos colonizados e ocupar capas diferentes. No futuro imaginado pelo autor, no século XXV, a humanidade já colonizou diversos planetas e venceu a morte conseguindo encapsular os dados correspondentes as nossas lembranças e a personalidade, podendo ser reintroduzidos em um novo corpo, chamado de "capa", através de um cartucho. Contudo, nesse mundo apenas os ricos conseguem "viver para sempre", ou seja, viver vários séculos trocando as capas quando querem. 

Takeshi vem de um dos mundos colonizados, chamado apenas de "O Mundo de Harlan", onde os povos eslavo e japonês foram predominantes na colonização e nunca tinha pisado na Terra até que foi morto. Décadas depois foi reencapado num corpo caucasiano na Terra e lhe foi ofertado um trabalho de investigação de assassinato por Laurens Bancroft. A vitima do crime é ele próprio. Bancroft é um "Matusa", rico o bastante para comprar a própria vida eterna. Takeshi, sem melhor opção, se joga na investigação mergulhando nos submundos de um planeta que não conhece tendo apenas seu treinamento mental de Emissário.

Os elementos do cyberpunk estão todos ali: uma história noir detetivesca, uma femme fatale, conflitos de interesse com ricos, submundos de crime. O principal é a alta tecnologia principalmente no sentido biológico e químico e a baixa qualidade de vida, mostrada na própria condição frente aos poderosos de Takeshi e da família Elliot. E toda essa tecnologia e as devidas interações são o ponto alto da obra. 

A trama é bem convincente e trabalhada, e não é complexa demais para um livro grande. Tudo é narrado na primeira pessoa e em um livro de 490 páginas dá bastante espaço para trabalhar o personagem de Takeshi, porém o personagem ficou repetitivo em sua masculinidade e parece que sofre de uma necessidade compulsiva de se mostrar como tal. Afinal, um mundo onde o prazer virtual é de fácil acesso e a possibilidade de estar um corpo do outro gênero é facilitada, os personagens são estranhamente presos na heterossexualidade. Além da ausência de homossexuais e de todas as mulheres serem nada mais que  passivas/histéricas/ardilosas/frágeis em maior ou menor grau, é apenas contraditório uma sociedade tecnologicamente avançada e uma mentalidade de 1930. E tudo isso não acontece pela falta de menção ao sexo. Uma das várias cenas de sexo de Takeshi é detalhada em vários detalhes, por conta do uso de uma droga que compartilha os estímulos e sensações entre os dois usuários enquanto transam.

A série adaptou bem o clima noir, as personalidades dos personagens, e preferiu esticar a subtrama da família Elliot o que acabou deixando a série um pouco arrastada da trama principal pois já temos muitos flashbacks de Takeshi no livro e muitos mais na série. O livro consegue ser mais objetivo pois conta sua história na primeira pessoa, já a série divide o tempo de tela para as outras subtramas. Um ponto para a série foi o personagem que é a IA do hotel onde Takeshi se hospeda. No livro o Hendrix pouco se destaca, mas na série Poe aparece mais e ficou muito bom, a mudança, provavelmente se deve ao fato de Edgar Allan Poe já ter sua obra como domínio público, ao contrário de Jimmy Hendrix. A série capricha no visual mas acaba falhando em não acelerar o ritmo já lento do livro. O final da série é bem diferente do livro, e o do livro ficou melhor. 

Carbono Alterado falha na ausência, principalmente uma curva de aprendizado consistente para o protagonista. Espero que o próximo volume as coisas evoluam, pois apesar de tudo o mundo é atraente demais para não ler o próximo número.
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