segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Resenha #162 - Violetas, Unicórnios e Rinocerontes (Cláudia Dugim Org.)


"Violetas, Unicórnios e Rinocerontes" (2020, Editora Patuá) é uma antologia organizada por Cláudia Dugim com a proposta de reunir autores e contos LGBTQIA+. Grande parte dos contos (ao menos os que consegui identificar) revisitam mundos de obras clássicas com novas histórias. Todos os contos refletem nos personagens a diversidade tanto em elementos mundanos, como um simples relacionamento entre dois personagens que são relevantes por serem inseridos sem alarde, até questões existenciais e de identidade de gênero inseridas nas extrapolações das histórias. No que tange a Ficção Científica, a qualidade está também excelente.  

Feito Bicho na Lama (Camila Fernandes) pinta um retrato de opressão e liberdade quando decidisse começar um mundo novo, livre desde a sexualidade até a organização social e econômica. Acompanhamos Ravnu que decide entrar para uma comunidade com essas características. A comunidade surgiu após Hubna Rak, uma catedrática ser questionada por seus superiores após uma escavação arqueológica que visava resgatar a história dos povos que foram conquistados por aquela sociedade. Hubna compra a briga e enfrenta os ditames legais enquanto Ravnu se encontra no amor de Nanu e Naida, ao mesmo tempo que sua família tradicionalíssima vai fazendo menos sentido. A construção desse mundo me lembra Ursula K. Leguin em "Os Despossuídos", no uso de um local alienígena para traçar comparações óbvias com a nossa sociedade extrapolando-a em um quase ensaio social. Vou guardar esse conto no meu coração como se fosse pertencente a Liga dos Mundos.

A História Antes do Fóssil (Cristina Laisatis) da autora de sensacional Fábulas do Tempo e da Eternidade no traz outro conto com o mesmo nível, trazendo uma história de seres de tempos imemoriais, sem forma física, na formação do planeta Terra. É aquele conto que nos faz viajar como o conto "Viagem Além do Absoluto" e alguns trechos do "Aguas vivas não sabem de si" da Aline Valek. Obrigado pelo passeio, Cristina!

Tudo é Macio Por Dentro (Sol Coelho) conto distopico em um mundo em que flores são catalizadores de uma contaminação mundial. Acompanhamos a pequena Nina, que se arrisca em túneis contaminados. O final é inesperado e emocionante, mesmo num conto curto como esse.

154 segundos (Celso Duvecchi) conto inspira-se no clássico Farenheit 451, (começando pelo anagrama numérico) no que parece um futuro desta distopia onde, além dos livros, os filmes de longa metragem passaram a ser proibidos, não permitindo-se programas com mais de 154 segundos. Espaço de tempo chamado período. Acompanhamos Fayola, que está participando de uma entrevista de emprego, no canal de televisão Telas, com a intenção de trabalhar com Marsha, a última artista que fazia longas metragens de quem Fayola é fã. O cenário faz uma espécie de continuação muito digna e criativa deste mundo lembrando do valor da sétima arte e seu potencial crítico.

Emiliano (Cláudia Dugim) Frederica Wari está em missão no planeta Agadi Toi Bebede em busca uma parte desprendida do seu povo/entidade. Frederica é uma parte dessa entidade coletiva formada por Vasos, Utilitárias e Opuais, que tem dificuldade para entender a individualidade do ser humano, ainda mais quando a sua extensão física precisa se misturar com os humanos para cumprir seu objetivo, mas a jornada acarretará em mudanças irreversíveis. O conto é muito instigante, pois se passa na pele de um ser estranho e o raciocínio que nos conduz a perdermos esse estranhamento, em parte pela linguagem e outra pela jornada de autoconhecimento são muito bacanas de acompanhar.

Teste Anti-Turing (Tiago Ambrósio Lage) Malva está em uma missão em busca de novos mundos para a humanidade, acompanhado apenas de Turquesa, uma IA que guia a nave. Malva começa a desenvolver uma paixão por Turquesa que começa a mostrar mais humano do que Malva imaginava. O conto começa com um pano de fundo que lembra 2001, mas a história guarda muitas reviravoltas.

Valei-me, Zé! (Saren Camargo) Zé é um jóquei de console, numa aventura de Neuromancer nas favelas do Rio de Janeiro. O conto faz uma mistura muito divertida, adaptando o cenário gibsoniano ao cenário brasileiro. A viagem pelo ciberespaço e outros termos dão um ar retrofuturista ao conto que absorve bem a pegada cyberpunk, com direito a um samurai urbano namorado de Zé.

Das Dores (Puri Matsumoto) Conto com ares de mitologia em que Maria das Dores é a última mulher do mundo, perambula acumulando dores até um fim catártico.

Filha da Terra (Alexandra Cardoso) Uriel é uma IA criada por um cientista a serviço de humanos na lua para espionar, influenciar e dominar os humanos na Terra mas o contato com uma jovem brasileira vai mudar tudo. Conto narrado por uma IA fornece uma visão da neutralidade de gênero interessante.

A Francesa (G. G. Diniz) conto de um caso de amor entre Amélie e uma cearense. A francesa se mostra misteriosa o que é revelado no final do conto.

Pensem nas crianças (Alexey Dodsworth) o que aconteceria se O evento de O Fim da Infância, de Artur C. Clarke, acontecesse em 1986. Iara de Oxumaré e seus netos Marcos e Jandira, descobrem uma ligação dos Senhores Supremos com Iara. O conto exige que tenhamos lido O Fim da Infância, para pegar todas as referências mas recompensa o leitor porque são muito inspiradas. Outro conto que já imagino no mesmo mundo da obra inspiradora. 

Em Busca do Éden (Tom Borges) nos trás de volta ao mundo habitado pelo oceano em Solaris de Stanislaw Lem. Acompanhamos a dr. Malta em uma nova missão de pesquisa ao planeta que está ainda mais abandonado desde que os soviéticos abandonaram a base e as pesquisas da ciência solarística. Sabe-se mais sobre o oceano mas isso não significa literalmente nada até que Malta, com a ajuda do visitante Matias, o noivo que abandonou, é obrigada a revisitar seus temores e defender seu novo achado científico. Conto imersivo e trouxe o clima de desolação de Lem com um tempero próprio.

Abissal (Saskia Sá) é ambientado no futuro do mundo de "Águas-vivas não sabem de si" de Aline Valek, em 2230 uma nova estação subaquática chefiada por Cecília investiga os mistérios abissais que ameaçam a integridade da estação que é quase uma cidade. Fazendo uso dos trajes (aqui já operacionais), a jovem Muriel é uma exploradora que ouve o chamado do oceano, que guarda segredos profundos como os de Cecília e Muriel. Conto faz um retorno muito agradável ao  mundo instigante de "Águas-vivas" e elaborar uma trama consistente em pouco espaço.

Download Concluídos... (Tiago Joy) O sensual Craig, ou o professor falido Lucas, enfrentam um grupo de hackers conservadores que caçam LGBTQIA+ para infectá-los com vírus que matam tanto a parte física como o virtual dos seus alvos. Conto parece ser inspirado no livro Jogador nº1 de Ernest Cline, mas como não li o livro, não posso confirmar. O conto parece que vai ter uma pegada divertida no começo mas o assunto vai ficando sério com o passar das páginas. Final ala PKD, do jeito que eu gosto.

XXX (Naná DeLuca) uma inteligência do espaço vigia nosso planeta diariamente, sem entender porque os humanos insistem em viver. É uma crônica disfarçada de conto, pois não há trama mas um punhado de reflexões sobre o mundo. Foi uma boa escolha para encerrar a antologia, pois ainda que destoe do gênero conto, as reflexões se encaixam perfeitamente com o restante da obra, como um manifesto que me agradou bastante.





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