segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Resenha #167 - Nova York 2140 (Kim Stanley Robinson)

"Nova York 2140" é a primeira obra de Kim Stanley Robinson a ser traduzida para terras tupiniquins. O autor estadunidense é consagrado pela sua trilogia sobre Marte (Red Mars, Blue Mars e Green Mars) que ainda não tem tradução no Brasil. 

A obra é uma verdadeira colcha de retalhos multicultural de uma Nova York do futuro onde as histórias se cruzam várias vezes numa rede que por fim acaba contando a história da própria cidade num período turbulento. Tudo isso em meio a um cenário onde aquela geração teve de lidar com as consequências catastróficas do derretimento parcial das calotas polares. O suficiente para aumentar cerca de 15 metros o nível do mar, inundando a baixa Manhattan e invariavelmente danificando ou destruindo todas as cidades costeiras do planeta. 

Não se trata de um livro pós-apocalíptico, como poderia-se esperar, e sim de como as pessoas ainda conseguem toca a vida apesar de tudo. Mostra as novas tecnologias que mantém os prédios protegidos da degradação da água, experimentos comunitários dos prédios, como o capitalismo lidou com a crise das áreas alagadas, como vivem nas áreas mais pobres. Enfim, o autor usa vários personagens para compor uma ideia de como seria essa Nova Iorque do futuro, caótica, perseverante e sobrevivente. O autor opta por um equilíbrio entre a distopia pintada pelas mudanças climáticas e a utopia quando nos dá esperanças de um futuro melhor. Sem nenhum exagero em cada elemento, essa opção deixa a história extremamente palpável soando muito verdadeira. O autor constrói a história de forma calma e por personagens críveis, pessoas comuns. Passando da policial linha dura a dois pivetes que cresceram nas ruas. De uma influenciadora digital ecológica a um investidor da bolsa de valores. Ainda passando por um sombrio síndico Sérvio-croata e uma advogada sindicalista de um prédio onde moram todos esses personagens, o Met. O autor não se poupa de colocar suas preocupações ambientais, presentes na própria especulação e preocupações políticas, quando aborda a especulação imobiliária e a característica predatória e gananciosa do capitalismo de mercado.

O leitor pode estranhar tantas histórias iniciadas, principalmente na primeira parte e adicionadas pela presença de um locutor que fala diretamente com o leitor, o "cidadão", mas essas vozes tem a mesma função da escolha do autor de uma cidade tão cosmopolita: Nova Iorque como representante de todo o planeta e aquele punhado de cidadãos como representantes daquela cidade. O resultado é o que o autor chama de "comédia dos comuns", cidadãos comuns contanto uma história com personalidade e cheia de verdade, dentro de uma especulação muito consistente. Vale a leitura!
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segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Resenha #166 - Rede Vermelha Sobre o Oceano de Merda (Cláudia Dugim)


"Rede Vermelha Sobre o Oceano de Merda e outros contos" é uma coletânea de contos de Cláudia Dugim, conhecida no Clube de Leitores de Ficção Científica no Facebook, onde administra (e coloca ordem no coreto) e contribui para ser uma das poucas comunidades de Ficção Científica onde podemos conversar sem o lado mais escroto do Fandom desse nicho que tanto amamos. Essa coleção, que é de 2018, fui conhecer durante o desafio Corrida Kindle 2020 que me rendeu muitas leituras agradáveis e esta foi uma delas. São seis contos bem curtos que fecham 51 páginas no total. 

"Entre Sólidos, Gelatina" conta sobre uma detetive que desconfia do cliente em um caso e acaba chegando a três trigêmeos num ferro velho. Conto se passa no mesmo mundo de "Boca Maldita" (publicado na no livro Cyberpunk) que se passa numa Antártida distópica. Conto é competente em manter um mistério num mundo diferente e aumentou minha curiosidade sobre esse mundo compartilhado da autora. 

"Para não dizer que falei de mim" é o primeiro conto que mostra a marca desse livro que é a criatividade em pensar em mundos absurdos. O conto é todo um diálogo de uma mulher ao espelho ponderando se envia o cadáver da amante numa viagem até a lua. "Rede Vermelha sobre o Oceano de Merda" é uma viagem insólita em um planeta que se degradou ambientalmente a ponto de se tornar um amontoado de vulcões e oceanos de merda na pele de um pesquisador que fica obcecado pelas áreas mais perigosas do continente. Inspirado em três quadros de Edvard Munch (Melancolia, O Grito e Separação).

"Bebês e Gatinhos Espiralam no Trono" uma operadora de torno mecânico que morre e renasce todo dia sem memória é abordada por um movimento revolucionário enquanto cria de bebês e gatos que não lembra de onde vieram. Alegoria instigante do ser humano pós-moderno. "Bossa Nova" segue uma entidade que tem seu movimento interrompido por cinco pessoas que tem seus desejos estranhamente atendidos. Conto repleto daquele absurdo que adoro tentar desvendar. "Para Elaézer Bouffier" é baseado no francês que após lutar na 2GM replantou uma reserva florestal inteira sozinho. O conto acompanha suas reflexões sobre a vida e é um relato muito emocionante.
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segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Resenha #165 - Shiroma: Matadora Ciborgue (Roberto de Sousa Causo)


"Shiroma: Matadora Ciborgue" é uma antologia de contos da personagem criada por Roberto de Sousa Causo que também faz parte do seu universo literário GalÁxis. O livro conta com onze contos, alguns estão espalhados em antologias que o autor participou e outros foram escritos especialmente para esse livro que lidos na ordem cronológica da história formam um ciclo, e tem um gosto de romance, pois cada conto vai acrescentando algo a uma trama e a construção da protagonista Shiroma.

Shiroma foi sequestrada, arrancada de sua mãe e submetida a experiências que a transformaram numa ciborgue com habilidades únicas até mesmo para o futuro imaginado por Causo. Tera e Tiago, seus tutores a usam como assassina de aluguel e foi literalmente educada para matar. Suas habilidades sociais, inclusive, foram direcionadas apenas para esse fim. A cada missão, os questionamentos sobre seu passado e sua origem ficam cada vez mais insuportáveis e seu único abrigo emocional é através de uma concha do mar, única lembrança de sua mãe que consegue revelar seu verdadeiro (Bella Nunes) nome através da concha. As visões de Shiroma/Bella, seriam alucinações por sua condição única? Seja qual for a resposta, a cada conto vemos uma personagem ganhando complexidade e somos brindados por uma série de escolhas bem acertadas do autor na construção das aventuras, dos personagens e da trama que perpassa todos os contos do livro. Vale muito a leitura!

O livro, mesmo não sendo um romance, consegue encerrar um ciclo que ganha sequência com uma nova noveleta para a personagem: Shiroma: Pheonix Terra, que será resenhado neste blogue em breve!
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segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Resenha #164 - Fábulas do Tempo e da Eternidade (Cristina Lasatis)


"Fábulas do Tempo e da Eternidade" (2008) é um dos melhores livros de contos que a Ficção Científica do Brasil já produziu. Cristina Lasatis, aborda o tempo de maneira universal com histórias carregadas de emoção, fazendo histórias simples em viagens profundas. O tempo e a Eternidade, é o conceito que percorre toda a obra e mostra seres humanos lidando com a morte. Cristina tem um domínio apurado da linguagem, algo não tão comum num gênero que sempre focou mais em imaginação e enredo, e mesmo esses elementos não faltam na obra. Suas histórias abordam o tempo sem apelar para o óbvio das histórias de viagem no tempo usando muitos tipos de personagens, girando em torno dos tipos humanos comuns e não em heróis infalíveis. É aquele livro que se recomenda para quem acha que Ficção Científica são apenas aventuras pueris. O livro tem 12 contos, um para cada hora do relógio. Vamos falar sobre cada conto individualmente.

"Além do Invisível" aborda um amor conectado a internet em realidade virtual. Marcos e Maya depois de um ano juntos em um amor intenso resolvem mostrar sua verdadeira identidade. A condução do conto é delicada, sem pressa e com um final muito bonito e melancólico. 

"As Asas do Inca" segue a paranoia do Imperador Inca Amaro Cápac, que vivei as vésperas da invasão espanhola, que não pouca recursos para saber se alguém o trairá pelo trono, até que chega aos Maias ao sul, onde o imperador poderá ter o que deseja.

"Nascidos das Profundezas", conta sobre uma tripulação de uma missão arqueológica encontra uma civilização isolada por acidente e no contato com eles, descobrimos que o desconhecido pode estar debaixo de seus narizes. O conto conduz bem a expectativa e as revelações do conto expandem a sensação de isolamento daquela civilização. O tempo é abordado no sentido da história como conhecimento acumulado.

"Revés Alquímico", se passa num campus de uma universidade comum no Brasil. Nos afeiçoamos ao Dr. Girandello que está em uma pesquisa que vai muito além da química e envolve Gláucia nesse mistério. Contudo, o clima de mistério não é sinistro mas doce, de uma amizade e de reflexões sobre a vontade de descoberta e, obviamente, o tempo.

"Assassinando o Tempo", conhecemos Cláudia Mansilha, desde a infância, dando a profundidade necessária, sem pressa e aqui o tema do tempo e da eternidade é envolto de uma competente Ficção Científica hard sobre uma teoria física bastante verossímil que a leva a construir um colisor de matéria para comprovar a sua teoria que, se confirmada, vai mudar a forma de ver o tempo para sempre.

"A Outra Metade" é bastante inspirada no trecho d'O Banquete de Platão sobre a ideia de almas gêmeas. Conto bastante sensível e mesmo em poucas páginas consegue desenhar lindamente os personagens e o conflito da trama.

"Viagem Além do Absoluto" conta a aventura final da vida cercada pela entropia que promete acabar com o movimento do pouco que resta do universo, a bordo da Aurora, ao mesmo tempo mostra a sobrevivência da entidade que restou, o Alpha e o Ômega. É aquela FC que nos faz viajar profundamente pelo mistério da existência. Conto para soltar o cinto e se deixar levar.

"De Onde Viemos, para Onde Vamos", mostra velhos intelectuais boêmios e fracassados reunidos num café para discutir a filosofia. Brinca com a ideia dos expectadores da vida enquanto um dos filósofos persegue a compreensão do que é o Nada. Conto que mostra um lado bem humorado e irônico da autora.

"Irmãos Siameses" se aproxima do Fantástico, sem chegar a tocar nele. Conta a história de dois irmãos siameses - Luri e Mani, Sol e Lua - que nasceram em Nova Tulor, na área montanhosa perto do Deserto do Atacama, Chile. Eles tentam levar uma vida tranquila como pastores de alpacas enquanto lidam com as diferenças de temperamento e pensamento, principalmente em relação a vontade de explorar o mundo de um deles, quando tem de lidar com um grande dilema. Podemos refletir como uma alegoria psicológica para nossas contradições internas sem deixar de nos emocionar com os personagens (como é de praxe da autora) bem construídos e aqui carismáticos também.

"Caçadores de Anjos" se passa na Idade Média onde nem os anjos escapam da inquisição, e Lúcifer está muito bem aclimatado. A reflexão do conto gira entorno das escolhas frente ao tempo e da imortalidade.

"Os Parênteses da Eternidade", se passa no mesmo mundo onde a Dra. Cláudia Mansilha, já modificado pela sua descoberta onde um correio entre épocas permite conversas entre pessoas completamente separadas pelo tempo. A autora consegue mesclar bem o clima amistoso das correspondências (contos epistolares me encantam) com a revelação final que pode arrancar aquele sorriso no canto da boca.

"Meia Noite" encerra com a continuação do primeiro conto, mudando o tom da narrativa, que na primeira vaga pelo intimo do protagonista, agora acompanha Syl, uma operadora de segurança eletrônica que tem de resolver um problema sério de invasão provocada por uma IA pertencente a própria empresa. É o conto mais longo do livro mas que expande muito o universo cyberpunk. Um universo que, como muitos criados neste livro, merecem um livro apenas para eles.
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