segunda-feira, 26 de julho de 2021

Resenha #193 - Symetrias Dyssonantes (Luiz Brás)


Minha cópia de Symetrias Dyssonantes fez uma viagem longa até minha caixa de correio. Ficou um tempo inominável num vórtice espaço-temporal ou, explicando para leigos, houve um atraso na entrega. Symetrias Dyssonantes aparenta ser apenas um livro de contos curtos de Ficção Científica, escritos por Luiz Brás, alter-ego de Nelson de Oliveira, e os primeiros contos até passam essa impressão, porém logo a viagem ganha ares lisérgicos em que cada conto a seu modo aplica golpes contundentes nas normas ABNT, explorando a linguagem com rebeldia inspiradora. Contudo, não se trata de uma exploração inconsequënte, pois o domínio do idioma, como dito no texto de quarta capa de Ricardo Labuto Gondim, é seguro.

O primeiro conto, Pupilas douradas, é um diálogo/entrevista com o desenvolvedor de um app que coloca uma IA para nos simular e poupar-nos de certas interações sociais que tanto evitamos. Como é de se esperar nem tudo vai como programado, até porque o programa passa a se controlar. É a primeira dose de ironia dessa vida conectada, seguida de Buscador, que trata de uma funcionalidade premonitória de um navegador ou uma profecia autorrealizável e, também, de Inteligência que contrapõe as maravilhas da tecnologia com os terrores que fazemos a nós mesmos. Em Você sai dois milhões mais pobre da arena dos negócios, começamos as explorações pela metalinguagem com uma versão menos eficaz da casa inteligente do conto anterior.

Presentinhos, foge da linha da FC explorando um caso de amor juvenil sentido pelo olfato. Polaroide é permeado pelo tom de despedida potencialmente suicida. Suspeita é uma conversa de um rapaz sobre uma garota estranha e uma camisinha que viajou no tempo. Manifestação muda o rumo da obra, nos jogando a um jogo de linguagem que nos faz oscilar entre o desejo de liberdade e as contenções que a vida impõe.

Distrito federal, é certamente o conto que originou o livro homônimo lançado pela Ed. Patuá em 2014. O conto é uma catarse de violência de um espírito vingador guiado pelo fedor da corrupção. O conto abre, o que poderia ser considerado uma segunda parte do livro. Com cenários distopicos, abordando um Estado Único e questões de gênero. Sob a cúpula acompanha uma trupe rebelde trans lutando contra o Estado Único e em Hotel extraordinarium explora um hotel tecnológico e deixa liberar a raiva contida e resolver o mistério na última frase.

Symetrias Dyssonantes é liricamente bizarro. Prosa exposta como música, referências a Beatles e Mutantes num portunhol narrando uma batalha épica entre Mapynguari Yabba Dabba Doo e a nuvem-nada. Passa a sensação de que só funciona para ser declamado em voz alta. O conto abre caminho para as loucuras que veem mais adiante, como por exemplo, personagens autoconscientes. O leitor atento vai suspeitar que Luiz Brás tenha passado a autoria deste e do último conto a mesma que assinou a orelha do livro. Revolução do ziper narra em duas camadas como o Estado Único empreende seu plano de dominação até um FIM que é devidamente derrubado por uma revolução. A metalinguagem brilha com um final lindo, ao menos na ficção.

Devorada pelo domingo, acontece em uma biblioteca em que Manuela conhece Tainá, mas ao fazê-lo desobedece a única regra da Velha. Parece se passar no mesmo mundo de Polaroide pois também temos uma Tainá, além dos Eumesmo e Elepróprio. Figuras recorrentes na obra do autor, como no conto seguinte Curto circuito camicase onde uma guerra surreal e uma contagem regressiva trazem uma conexão com o conto anterior e vemos contos que exploram a linguagem e sensações que em enredos amarrados. Saltos altos é frenético como tentar ler centenas de mensagens em poucos minutos e tentar entender o que aconteceu e precisar ler novamente para entender os detalhes. 

Este lado para baixo?, Obituário e Fim do lockdown, pourra! são pequenos minicontos cheios de raiva sobe a violência e nosso novo/velho normal, que nos fazem acelerar até Kurupira Maquinaíma alienigenus é o conto mais próximo possível de jogar cripto palavras na revista coquetel. A língua e a literatura se dissolvem sem que o narrador nada possa fazer para evitar. Por fim, [Epylogo] La profana santidad (ou El triunfo del completo y verdadeiro valor de pi) é um acerto de contas entre autor e personagens, narrado naquele portunhol do conto cantado que dá título a obra. É muito divertido ver o seguinte mantra transcender as eras e qualquer tentativa de enquadramento:

Então, fulana, você acredita mesmo que esse é o futuro da ficção? Marionetes que enxergam os fios? Criaturas sem corpo num mundo-fantasma? Personagens autoconscientes nascendo, vivendo, amando, sofrendo e morrendo num emaranhado de textos?

Symetrias Dyssonantes é uma coleção de ideias malucas, metalinguagens, que se tornam prolíficas quando aliadas a FC. Os que fazem questão de leituras (en)quadradas vão odiar suas linhas distorcidas porém não podemos acusar o autor de não tentar chegar até eles. A loucura, na forma, na metalinguagem, na recorrência de personagens é apresentada de forma progressiva.

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segunda-feira, 19 de julho de 2021

Resenha #192 - Homo Deus: Uma breve história do amanhã (Yuval Noah Harari)


"O liberalismo entrará em colapso no dia em que o sistema me conhecer melhor do que eu mesmo me conheço. O que é menos difícil do que pode parecer uma vez que a maioria das pessoas não se conhece realmente muito bem."

"Homo Deus: Uma breve história do amanhã" do historiador israelense Yuval Noah Harari é uma obra muito importante para pensar o futuro da humanidade e, logo, para quem gosta de pensar a Ficção Científica para além da ficção. Esse gênero que tanto amamos e que tanto resenho por aqui, ainda sofre com a falta de atualização dos próprios escritores. Para voar alto e imaginar mundos que extrapolem o nosso é preciso que nossas bases de conhecimento científico estejam minimamente atualizadas, sob o risco de sairmos do terreno da FC sem nem saber disso! Todo esse rodeio foi para justificar essa obra de não ficção em um blogue de FC. Imaginar a história amanhã, não é obrigação para o escritor de FC, mas é inegável que a arte, de uma forma geral, tem a capacidade de antecipar padrões que serão normais no futuro então buscar conhecimento para continuar imaginando e extrapolando é como fazer uma boa fundação, preparando voos mais altos e seguros.

Harari nos traz visões para possíveis rumos da humanidade baseado em tecnologias que estão nos afetando hoje (2016, quando publicou o livro) mas não o faz buscando ser sensacionalista, chocando o leitor. A sua escrita é leve, descontraída sem exageros e sua habilidade em explicar processos complexos faz a obra ser muito agradável de ler. Contudo, suas previsões são de mudanças profundas e podem chocar os mais sensíveis, quando não ofender os mais crentes. Obviamente que para explicar sob quais bases novas o futuro será construído, é necessário mais que apenas recapitular as bases atuais de nossa sociedade, política, religião e economia, mas analisá-las para acompanharmos o próximo passo da humanidade.

A premissa, que dá nome ao livro é que o ser humano dará um passo evolutivo de Homo Sapiens para Homo Deus. É uma afirmação aparentemente poderosa e implica em uma mudança grandiosa, contudo não seria a primeira delas. Para o autor essas mudanças serão causadas pela nova agenda humana que são: A busca pela felicidade; a busca pela imortalidade e a busca pela divindade/poder que substitui a antiga agenda de prioridades da humanidade. Evitar a guerra, a peste e a fome. O autor defende-se de antemão as novas demandas signifiquem que as antigas estejam erradicadas, apenas controladas de forma que não representam um risco imediato para a a vida humana na Terra. Guerra, peste e fome hoje são problemas que a humanidade pode combater e não apenas rezar e esperar uma intervenção divina. Hoje o ser humano consegue suprir as demandas que antes eram feitas a entidades sobrenaturais e neste momento já desenvolve-se a tecnologia que busca alcançar as novas demandas. A imortalidade é considerada apenas uma questão técnica, que quando resolvida elevará o ser humano a amortalidade. A felicidade encontra uma barreira pela expectativa que a conquista gera e as reações químicas que disparam no cérebro e essa pode oferecer uma chave para a felicidade. O poder de realizar o que antes eram apenas pedidos realizados em preces dá o poder para o Homo Sapiens tornar-se Homo Deus.

O autor divide o livro em três partes: na primeira o autor retoma como o ser humano dominou as outras espécies animais, o mundo através da capacidade de contar histórias, ficções, convenções que unem indivíduos que não se conhecem como o dinheiro, a nação e a religião. Mamíferos como o porco ou o macaco são incapazes disso por isso foram dominados. Um exemplo é a narrativa da bíblica de Adão e Eva como forma de narrar a passagem de caçadores-coletores para agricultores.   

Na segunda parte, o autor fala sobre como o humanismo é a nossa religião atual. Religião no sentido de orientar e estruturar a sociedade, dando significado em forma de leis sobre-humanas. Assim as novas neo-religiões (Nazismo, Liberalismo e Comunismo) propuseram soluções para os problemas da humanidade através da ciência: curar doenças, fazer guerra e produzir alimentos. O humanismo fornecia a justificativa ética para que a ciência resolvesse esses problemas. No fim das contas, o liberalismo humanista acabou sendo a forma de humanismo vencedora baseada nos valores do individualismo e livre-arbítrio com os lemas do "cliente/eleitor sempre tem a razão".

A terceira parte é onde, depois de todo embasamento, o autor chega ao seu ponto. Novas tecno-religiões vão substituir o liberalismo humanista na busca e conquista da própria agenda (divindade, imortalidade e felicidade) pois os valores do livre-arbítro e do individualismo se perderão pelos avanços tecnológicos. A extrapolação disso gerará duas novas religiões: O tecnohumanismo e dataismo. A primeira busca usar a tecnologia para manter o ser humano útil enquanto o dataísmo, tira a centralidade do ser humano e coloca no fluxo de dados e informação e o ser humano é apenas uma parte e o nosso significado é apenas para dar existência das máquinas. O meio para aumentar o fluxo de dados é através da internet das coisas e promover uma integração sem limites. Fica os questionamentos sobre se os organismos são algoritmos e a vida processamento de dados. Também sobre a inteligência e a consciência e os destinos da política, economia e sociedade quando os algoritmos nos conhecerem melhor que nos mesmos.

É importante mencionar que o autor traça o nosso futuro baseado apenas nas extrapolações do que tem se desenvolvido até o momento. Qualquer exercício de futurismo, por melhor embasado que seja, não pode prever tecnologias que ainda não foram inventadas como por exemplo o nosso mundo digital. Muitas obras de FC são facilmente contextualizadas como antigas por conta da tecnologia analógica. De qualquer forma o exercício é válido principalmente porque é muito bem embasado e nos ajuda a pensar a sociedade hoje mais que a futura.  
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segunda-feira, 12 de julho de 2021

Resenha #191 - A Arma (Philip K. Dick) - CONTO


"A Arma" é um conto de Philip K. Dick, traduzido por Laura Scaramussa Azevedo e publicado diretamente na plataforma Amazon e faz parte do projeto de traduções de obras de domínio público Literatura Descoberta, onde há muitos contos clássicos como Edgar Allan Poe, H. G. Wells, Rudyard Kiping, Ambrose Pierce, Mark Twain. Infelizmente não há muitos contos de Ficção Científica na coleção, mas o projeto gráfico simples e bonito e a boa tradução (ao menos neste conto) valem a pena, principalmente se você assina o Kindle Unlimited.

O conto narra uma nave exploratória que chega a um planeta desconhecido e é alvejada por uma arma enorme. Os sobreviventes da nave decidem explorar e se arriscar chegar perto da misteriosa arma e descobrem que não há ninguém vivo para ser protegido pela arma e que ela opera de modo totalmente automático. Conto antibelicista ao mostrar a estupidez da arma e muito corajoso da parte do autor, tendo em vista a tradição dos EUA em relação a armas de fogo. O conto é curto e a leitura vale a pena pela reflexão e o final tem aquela criatividade que já conhecemos do autor!    
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segunda-feira, 5 de julho de 2021

Resenha #190 - Arcanjo (William Gibson e Michael St. John Smith)


"Arcanjo" é a primeira HQ criada por William Gibson, que escreveu essa história inicialmente como um roteiro para o cinema. A história certamente daria um ótimo filme pela ação e carisma dos personagens (quem sabe isso não acontece, um dia...) e parte deste carisma está na arte de Butch Guice. A história é sobre viagem no tempo e mesmo que essa não seja muito complexa, o roteiro conseguiu explicá-la sem desperdiçar muito espaço, abrindo espaço para a ação que move o enredo.

Acompanhamos vários personagens e começamos em um 2016 alternativo onde um desastre nuclear global colocou o Coronel Henderson como presidente vitalício (um ditador, obviamente) dos EUA e seu filho (Henderson Júnior) parte em uma missão no tempo para a Alemanha já derrotada em 1945 para controlar "nossa" linha do tempo, em resposta, a Major Torres lança uma missão para impedir os planos dos Henderson, mas o bombardeiro B-2 se choca em pleno ar com um esquadrão de B-52. O piloto sobrevivente é aprisionado num quartel estadunidense na Alemanha. Então a oficial do Naomi Givens é incumbida de buscar informações sobre o acidente com o Capitão Vince Mathews, um antigo caso que não terminou bem. Começa então um jogo de perseguição e busca pela verdade que pode transformar o nosso futuro tão terrível quanto o 2016 comandado pelos Henderson. Outros personagens de destaque são o Alemão Fritz, um refinado sobrevivente do Holocauso (por ser gay), que conhece os caminhos secretos das ruas para ajudar Naomi; e o agente soviético Yerenkov, retratado quase como sempre se retratam os soviéticos, sisudo e desconfiado, mas longe de ser um vilão automático. Aliás, é uma constante de William Gibson não se render a dicotomia cansada da Guerra Fria para ambientar esse período. Recomendo essa HQ para quem curte FC, viagem no tempo e o trabalho de Gibson mais focado na aventura sem perder a inventividade do autor. 
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quinta-feira, 1 de julho de 2021

Não deixe o punk morrer (Davenir Viganon) - OPINIÃO


O cyberpunk é meu subgênero favorito da Ficção Científica, desde que vi pela primeira vez (quando era um guri nos anos 90) aquele mundo escuro de Blade Runner, cheio de riqueza e pobreza coexistindo em caos. Com o passar do tempo, surgiram muitos gêneros derivados dele; o primeiro, o steampunk, foi criado pelos próprios expoentes do cyberpunk, William Gibson e Bruce Sterling, mas algo se perdeu nas quatro últimas décadas.

Antes de externar minha quase indignação/lamento, vamos desmontar um pouco essas engrenagens, ou chips se preferirem. O cyberpunk que conhecemos surgiu nos anos 1980 nos EUA, como um movimento literário na Ficção Científica. Referiam-se a si mesmos apenas como O Movimento e buscavam novos ares para o gênero, contrapondo-se à Era de Ouro da Ficção Científica, marcada por heróis virtuosos, conquistando o espaço, combatendo monstros como William Gibson criticou em seu conto, The Gernsback Continuum, de 1981. Nesse conto, um fotógrafo encontra-se com um casal, esteticamente muito parecidos com personagens de Flash Gordon, série que representa bem a FC que os cyberpunks buscavam contrapor. O fotógrafo do conto refere-se ao casal como algo saído de um pôster de propaganda nazista. Os cyberpunks buscavam novos caminhos para a FC, que incluíssem falar de sexo, política e drogas abertamente, pelo prisma das ciências sociais e humanas, não apenas das ciências exatas.

A rebeldia e a atitude dos punks são os elementos cruciais do que viria a se chamar cyberpunk. O termo é uma mistura, a grosso modo, da palavra cyber, que remete a tecnologia e punk, no sentido de pessoas marginalizadas da sociedade, impressas no lema “High Tech, Low Life”. Uma atitude desacreditada em um mundo que se pauta na alta tecnologia e baixa qualidade de vida. Expor essas contradições sociais, por meio da pervasividade da tecnologia é o centro da abordagem política do cyberpunk. Passadas quatro décadas, o cyberpunk acabou se tornando realidade em muitos aspectos.

No início dos anos 90, os dois maiores expoentes do cyberpunk, lançaram A Máquina Diferencial. Uma obra retrofuturista numa Inglaterra vitoriana, ou seja, recriou um momento do passado (o sucesso do invento de Charles Babbage, por exemplo), caso algo acontecesse diferente de nossa história. Na obra, ainda se fazem presentes os elementos de rebeldia e a relação com a tecnologia. O nome steampunk fazia sentido na obra, pois ela guarda muitas semelhanças na essência com Neuromancer, obra essencial do cyberpunk.

Tanto o cyberpunk quanto o steampunk extrapolaram os limites da literatura. A estética cyberpunk dominou o cinema de ação, de Blade Runner a Matrix, e a estética oitentista de uma maneira geral. O steampunk, se não tão famoso, trilhou um caminho que, na literatura, o aproximou da Fantasia, e ganhou espaço entre cosplayers encantados com a estética (neo)vitoriana. Algo se perdeu. A estética suja de fuligem e fumaça dessa Inglaterra vitoriana que nunca existiu tornou-se algo limpinho e elegante, que em nada tem da atitude e rebeldia punk, que Gibson e Sterling escreveram em A Máquina Diferencial. É triste ver o sufixo punk em algo que muitas vezes não tem nada de punk. Estética pela estética. Poderia ser apenas retrofuturismo e não haveria nada de essencialmente errado nisso.

Contudo, nem tudo está empapado de beleza e estilo. Especificamente na literatura, podemos acompanhar várias obras brasileiras de steampunk que mantêm viva a rebeldia, a contestação e a atitude que fazem jus ao punk desse subgênero tão amado. Mais especificamente ainda, as obras steampunks de Eneias Tavares, A. Z. Cordenonzi e Nikelen Witter. São histórias retrofuturistas, cheios de personagens marginalizados com destaque e respeito, escritos com habilidade e referências histórias que deixam maravilhado este historiador que vos escreve. Tudo isso sem perder a atitude e a rebeldia que me fazem gostar tanto dessas visões semeadas, há quarenta anos, por Gibson e Sterling. Concluo clamando aos leitores e escritores que não deixem o punk morrer como um sufixo vazio.

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