Este conto foi minha primeira investida na Fantasia. Ele é resultado de um desafio literário promovido no blog Entre Contos. Cada desafio algumas regras são modificadas como tema, tamanho do texto e a forma de avaliação, mas basicamente trata-se de um espaço onde todos podem praticar a escrita e a leitura, consciente da literatura. A versão que posto aqui foi alterada com o aproveitamento das dicas que recebi fruto da interação que o desafio promove.
Leia a versão original e ler os comentários do desafio por aqui, ou baixe gratuitamente o E-book para lerem onde quiser, ou ainda, leia aqui no blog mesmo. Espero que gostem.
A procura
I
Olhou para a vastidão de terra que o cercava e
viu o mundo. O velho griô sabia o nome que se dava a cada porção
de terra, mas mundo era o único nome que lhe fazia sentido. O seu
mundo era um pouco de cada um que conheceu. Vasto apenas porque
compartilhou, daí vem o mais belo do conhecer. Foi o que fez naquela
noite de festa do reino de Idunu. Não diferenciava, há tempos,
vilarejo, aldeia ou reino. Eram todos reino. Cada reino com suas
pessoas, cada pessoa com seu mundo e era atrás dos mundos que
caminhava sem parar.
***
As casas decoradas cercavam a praça calçada
de arenito polido, um oásis em terras áridas banhadas pela
intermitência do grande rio que corta o mundo. No terceiro dia da
festa, ao deus chamado Òfún, pela boa colheira, todos já estavam
exaustos da comemoração. O vinho de palma havia embriagado quase
todos os seus felizes habitantes. Os adultos da cidade dormiram onde
caíram. Deitaram-se e deixaram o sono o levar pela correnteza dos
sonhos. Durante os dias de festa as crianças divertiram-se sem se
embriagar, dormiam e acordavam para divertir-se novamente de modo que
havia sempre crianças correndo, gritando e alegrando o ambiente
enquanto outras encantavam os adultos com seu sono inocente.
Um grupo de crianças estava acordada quando se
deram conta que todos os adultos estavam dormindo. Era tarde da noite
e nunca se distanciaram de casa a essas alturas.
— Vamos andar pelos arredores da praça —
Disse Oshanna, a mais corajosa delas.
— Eu não, vai você. — Um dos meninos
disse, sendo seguido por outros em coro.
— Que medrosos. — Oshanna puxou o líder
dos medrosos, que envergonhado a seguiu, e os outros acompanharam.
Seguiram a grande aventura a metros do berço
pela parte central da praça iluminada por piras que queimavam alto.
Seguiram até a mata escura quando viram um ponto luminoso não muito
longe. Esconderam-se e ficaram aos cutucões e os dedos indicadores
na boca tentando não fazer barulho. O ponto de luz era uma tocha
acessa, a medida que se aproximava, logo revelou uma forma humana que
a segurava. Um homem velho que caminhou pela trilha árida envolto de
palmeiras e grandes plantas sazonais, comuns em Idunu, parou no ponto
da trilha bem perto de onde as crianças estavam, sem deixar de olhar
para frente.
— Aqui é o reino de Idunu?
As crianças arregalaram os olhos, mas Oshanna
logo levantou, ansiosa por mostrar sua coragem. Já os outros
levantaram desanimados como que pegos numa brincadeira de esconder.
— Não é reino, é aldeia!
— Vim conhecer a festa da colheita de seu
reino.
— Estão todos dormindo, menos nós. —
Revelou ingenuamente um dos pequenos.
— Achei que encontraria alguém disposto a
ouvir minhas histórias.
— Um Griô? — Oshanna falou com seus olhos
negros arregalados de emoção. — Venham seus medrosos, um contador
de histórias não irá matá-los. — Eles vieram encorajados, mas
com medo do desconhecido.
Oshanna disse para que o contador lhes contasse
uma das suas melhores histórias que depois sua família lhe
recompensaria. Então, sentados em torno de uma das piras da entrada
da cidade, o griô anunciou que contaria a história de Tyádora, uma
grande guerreira. As crianças nunca ouviram falar dessa história o
que as deixou muito curiosas.
II
Há muito tempo existiu uma formidável
guerreira de nome Tyádora. A mais velha das duas filhas do rei
Qussim e da rainha Nebula, do reino Onijala. Era uma mulher dotada de
uma beleza lendária além de ser uma guerreira muito habilidosa em
combate, dominando a lança e o escudo como ninguém. Era dito que
arremessava a lança no futuro e atingia o adversário no passado.
Porém o governo do rei Qussim, entrou numa torrente de guerras
contra o poderoso reino de Jagun. Muitos diziam que trata-se de uma
vingança dos seus antigos conselheiros, os donos da adivinhação,
conhecidos por babalaôs. Em períodos anteriores eram tão
respeitados quanto os reis, e isso teria trazido a inveja de Qussim.
Sem suas previsões, cunhou seu governo na base da conversação e
alianças meticulosas. Como uma árvore seca que perdera as folhas,
Onijala morria aos poucos. Tyádora, sempre disposta a mostrar seu
valor nas artes da guerra, treinou até se tornar a melhor guerreia
do exército de Onijala. Lutou e alçou notoriedade mas todo seu
esforço só havia servido para evitar a aniquilação do reino,
nunca conseguira nada perto de derrotar o inimigo.
A paz entre os reinos veio apenas depois da
morte do velho rei de Jagun. Seu filho Zabor, assumiu aquele reino.
Ele crescera em meio a ânsia pela guerra de seu pai mas ansiava pela
paz e aceitou negociar com Qussim. Não demorou muito para que a
disposição para a paz dos dois reis se convertesse em um tratado.
Ficou acordado que Zabor se casaria com Tyádora selando a paz entre
os maiores reinos do mundo.
As famílias passaram a se reunir em encontros
de esperança e desconfiança mútuas.
— Espero que nosso casamento sele a paz tão
necessária, rei Zabor. — Tyadora disse solenemente.
— Eu espero mais que isso.
A beleza de Tyádora se manifestava tanto nos
traços suaves e arredondados quanto na sua animosidade constante.
Zabor estava encantado. Tyadora permanecia indiferente.
O velho rei alimentava a esperança de
sobrevivência do reino servindo pessoalmente vinho de palma à jovem
filha e ao rei vizinho. Onijalenses viam aquilo como um sinal de
submissão, já para os Jagumanos, um ardil do velho rei.
— Você e as próximas esposas poderão
desfrutar bastante o período de paz que virá.
— Não quero outras esposas, apenas você
Tyádora.
— Não prometa isso. Meu pai disse o mesmo a
minha mãe.
— É tudo tão inevitável para você? —
Tyádora ignorou. — Como na guerra?
— É muito orgulhoso dos teus acordos, assim
como meu pai. Se esta guerra acabou foi apenas por vocês serem
parecidos. Ainda não decidi se penso que essas guerras ocorrem
porque vocês reis a querem ou não.
— As vezes não temos escolha e — ficou sem
palavras.
— Você também não sabe, talvez sequer
tenha se perguntado antes. Pensava que apenas sendo a melhor acabaria
com a guerra, mas lutando vi que não. Até que veio você e este
casamento. Para acabar com a guerra eu farei esse pequeno sacrifício,
por isso não precisa me prometer nada. Agora, me responda, que
escolhas que vocês reis não fazem que acabam resultando nas
guerras?
Zabor continuou sem palavras e aliviou-se por
um instante com a interrupção causada por algumas vozes que
clamavam a plenos pulmões.
— O Ibiri de Onijala desapareceu!
Os olhares dos guerreiros de ambos os lados
recobraram o rubror da guerra e algumas armas foram erguidas. Mas a
paz que Zabor e Qussim tanto lutaram para erigir era preciosa demais
e exigiram muito dos seus melhores esforços para acalmar os ânimos
dos aliados da findada guerra. Zabor e Qussin discutiram uma solução
em meio aos convidados ansiosos.
— Lamentamos o roubo do Ibiri, rei Qussim.
Sabemos que pode ter sido qualquer um insatisfeito com a paz.
— A autoria do roubo é menos importante que
o desaparecimento do Ibiri, Zabor. Ele é muito mais importante do
que aparenta. Sem ele as colheitas não serão boas o suficiente para
alimentar a todos.
— Achei que não acreditasse nas
adivinhações dos babalaôs?
— Os amuletos não tentam nos enganar. Não
podemos ficar sem eles.
— Como seu convidado, devo partir para
recuperá-lo. — Zabor anunciou gravemente.
— Não, Eu vou. Consultarei Mwelo, a melhor
babalaô viva, que aprendeu com o próprio Orunmilá. — Todos se
voltaram para Tyádora.
— Mas Tyádora...
— Acabamos de sair de uma guerra e não vou
permitir que ela recomece. Podemos muito bem consultá-la.
— Não, minha filha. Você sabe que Mwelo
não faz adivinhações sem carregar uma maldição junto. Não
podemos mais depender deles, agora muito menos, porque nutrem raiva
de nós.
— Pode haver pior mal que uma nova guerra? —
Disse Tyádora.
— Concordo com seu pai, Tyádora. Melhor
obedecer. — Falou sem firmeza e recebeu um olhar furioso de
Tyádora que, por fim, se calou e deu um passo para trás.
A reunião continuou, mas Tyádora que se
manteve calada e não foi notada quando saiu de perto da fogueira que
iluminava parcamente os rostos preocupados. Quando notaram sua
ausência, suas armas já haviam desaparecido. Ninguém pensou em
procurá-la junto a cama da irmã mais nova, Zene. Lá estava também
Nebula, sua mãe.
— Eu sei que está nervosa com tudo isso,
mas eu vou voltar – disse para as duas. Não vai mais ter guerra
aqui. — Tyádora abraçou Zene, enquanto olhava para Nebula, que
nada disse. Zene parecia inconsolável.
— Faça tudo que puder para voltar, Tyádora.
— o olhar acalentador de Nebula, foi toda benção que precisava
para seguir.
Deixou-as agradecendo a Obá por Zene não dar
alarme de sua fuga. Tyádora saiu a toda velocidade rumo ao único
lugar onde poderia saber do paradeiro do Ibiri. Assim começou seu
caminho.
III
A cabana da adivinha Mwelo era de difícil
acesso, onde bandos de leões não são raros. Mas a grande árvore
oca transformada casa era inconfundível. Não havia porta e Tyádora
entrou sem ter certeza que Mwelo estaria lá. Então, Mwelo falou
como se não houvessem paredes na sua casa, tampouco nas mentes das
criaturas vivas, quando sua voz entrou na cabeça conversando
diretamente com seu íntimo, ignorando a hospitalidade e revirando os
medos. Quando em transe, sob guia de Ifá, Mwelo via o futuro e
jogava seus búzios tanto para reis quanto para aldeões.
— Apenas faça a pergunta. — Mwelo disse
sem mexer os lábios secos.
O interior da oca era repleto de incensos
acessos e a fumaça passeava lentamente como se morasse ali. Seguindo
a voz, ou sendo levada por ela, rompendo os filamentos do perfume de
ervas misteriosas, Tyádora encontrou Mwelo, sentada atrás de um
tablado onde via círculos formados por colares de contas. Quando
formulou uma pergunta Mwelo a interrompeu. Agitou os búzios e falava
em transe. Não falava nenhuma palavra que Tyádora conhecesse.
Lamentou ter crescido sem conhecer os adivinhos.
Até que jogou os búzios. Abriu os olhos.
Catou alguns. Olhou de novo. Catou outros. — Seu rumo será bem
caminhado, achar o Ibiri de Omijala. Mas te peço que não vá,
Tyádora.
— Não tenho escolha, se eu não for a
guerra recomeçará, nem meu pai, nem Zabor juntos podem acabar com
as guerras do jeito que está.
— O caminho está claro para mim, mas só
posso te guiar se tiver certeza de que poderá cumprir até o fim.
— Para manter a paz entre Omijala e Jagun,
sim.
— Entendo. Mas deve saber que uma vez nele,
terá de pagar um preço.
— Que preço? — A feição de Mwelo se
fechou.
— Saber do destino me custou o exílio —
Olhou ao redor — Mas você não quer dominar o destino, não é?
Então o preço será outro – deu de ombros, jogando a resposta ao
mistério. — Para obter o Ibiri terá de reclamá-lo ao povo de
Ganar.
— O povo de Ganar, os que controlam os
raios?
— Xangô controla os raios. Eles são
obedientes a Xangô e ele os concedeu o seu uso. Não se esqueça
disso.
— Obrigado Mwelo.
Mwelo nada disse, apenas montou uma expressão
diferente em seu punhado de rugas. Tyádora saiu e dedicou parte de
seus pensamentos para tentar entender aquela expressão. Parecia
tomada de uma grande falta. Haveria
uma palavra que expressasse isso? Afastou
o pensamento a medida que se distanciava da árvore oca de Mwelo e
muito mais do reino de Onijala. Passou dias caminhando. Afastou-se,
alçando montanhas gigantescas onde os dois reinos pareciam um único
ponto na imensidão do mundo. Isso a deixou feliz e esperançosa, mas
também com uma tremenda vontade de ver sua família novamente.
IV
Cansada e tão longe de sua casa, Tyádora
caminhava numa terra castigada pelos ventos de Oyá. Teria
andado em círculos, até agora?
Caminhou dias sem conseguir uma caça, dormindo mal em abrigos
improvisados, enrolada pelo frio e pela fome, nunca passara tanto
tempo fora de casa. Até que encontrou uma fonte de água e os restos
de um assado que devorou com vontade. Quando recobrou as forças
notou que deveria ter gente por perto. Seu instinto se aguçou
novamente. Não demorou muito a ouvir os trovões e os gritos de
alegria dos homens que os provocavam. Olhou do alto da pequena colina
e viu a aldeia dos Ganar, os filhos de Xangô, os que tutelam os
raios.
Apesar de ter comido os seus restos, não os
deixaria vê-la como uma pedinte e sim como uma princesa guerreira de
Onijala. Aproximou-se do grupo de homens, enfeitados com plumas num
zige-zagueado que simulavam os raios em todas as partes da sua
vestimenta. Eles a notaram e ela falou.
— Eu sou Tyádora de Onijala. Exijo falar com
seu líder.
— Suma daqui, mulher. — Um deles disse
estendendo os braços para trás como se fosse arremessar algo.
Sorriu zombeteiro, causando risadas dos outros do grupo.
Tyádora caminhou firmemente com sua lança em
riste e com o escudo erguido. O grupo sentiu a ameaça e se postaram
em combate.
— Não quero lutar, apenas falar. — No
fundo ela estava desejosa de enfiar a lança e estripar aqueles
soberbos.
A resposta foi que dois dos homens repetiram o
gesto de provocação, mas desta vez, raios surgiram das mãos deles
e os arremessaram como lanças. O primeiro errou Tyádora e o segundo
raspou o escudo. Sentiu seu braço estremecer por dentro, um tipo de
dor que não conhecia. Quando percebeu que seus adversários ficaram
expostos e Tyádora aproveitou, ignorou a dor, projetou seu escudo e
derrubando um dos Ganar e o outro com um chute rodado. Um terceiro
veio com um raio mas usando como uma espada golpeando de cima para
baixo. Tyádora fez um arremesso com a lança e arrancou a orelha do
guerreiro que caiu gritando de dor. Um último, o que parecia ser o
líder do grupelho, fez uma lança e um escudo com os raios,
armando-se de modo parecido com Tyádora. Eles chocaram os escudos,
mas Tyádora nada sentiu, e apontaram as lanças nos pescoços um do
outro. A lança de Tyádora era maior e os olhos do guerreiro ganar
se arregalaram.
— Só preciso de um de vocês vivo para me
levar ao seu líder. Será você? — Seu olhar ameaçador não
deixou transparecer a dormência no seu braço que ainda segurava o
escudo.
***
Tyádora foi levada até o líder dos Ganar.
Entrou nos limites de sua aldeia. As casas baixinhas de barro eram
decoradas com desenhos coloridos. Eram motivos com raios e imagens de
homens nus com corpos perfeitos de pele brilhosa e olhares lascivos,
exatamente como eram os homens daquele povoado, não teve como não
reparar. Conseguiu ver poucas mulheres. Elas estavam atrás da
corrente de homens que tinha prioridade em ver a estrangeira, mas os
poucos olhares que viu eram apertados de fúria e ciúmes. No centro
viu uma fileira de homens mais ornamentados, evidentemente o líder
deles seria o mais suntuoso daqueles homens. Eis que ele falou.
— Esta é a guerreira que os botou de
joelhos? — Inquiriu ao guerreiro que sobreviveu. — Veio falar
comigo? Se não soubesse disso talvez a teria matado, mas minha
curiosidade é maior. Qual o motivo de sua vinda?
— Meu nome é Tyádora do reino Onijara. Eu
vim exigir o Ibiri que foi roubado.
— Não importa de que parte do mundo você
veio. O Ibiri está com os orixás agora.
— Então o tragam para mim. Vocês o
roubaram.
— Não seja tola. Os Ganar não roubam,
conquistam o que desejam. — Olhou para onde se encontravam as
mulheres.
— Então vocês conquistaram de alguém que
roubou.
— Isso não nos interessa.
— Mas interessa ao meu povo e vocês tem de
devolvê-lo.
— Já disse, não nos interessa. Não está
mais conosco.
— Para quem vocês venderam?
— Tola. Não vendemos nada, conquistamos.
Como acha que conquistamos o poder dos raios? Seu Ibiri foi entregue
como oferenda para Xangô e ele continua a permitir que o usemos o
poder dos raios. Assim fazemos para termos o que quisermos.
— Vocês tem acesso a Xangô? Podem me levar
até ele. — Riram como se ouvissem a piada mais engraçada do
mundo.
— Ele só fala com quem ele desejar. Se ele
quisesse falar com você já teria aparecido aqui mesmo.
— Mentiroso. Deve ter algum local sagrado
que vocês buscam o seu auxílio. Eu quero ir para lá. — O sorriso
do líder dissipou-se e tirou as costas de seu trono de palha — Se
me levarem para Xangô, seremos seus aliados e forneceremos
mantimentos em troca de apoio em futuras guerras. — O sorriso
voltou a brilhar na face do líder.
— Pois bem. Vamos dar o que quer. Mas não
podemos garantir que Xangô queira falar com você. Vai ser
interessante vê-lo dizimar-te com um raio.
V
Tyádora foi acompanhada pelo líder, chamado
Ciko, e mais dois Gunar para uma montanha fora da aldeia. Caminharam
por toda a manhã do dia seguinte até encontrar um templo muito
estranho. Nunca tinha visto nada parecido. Uma caverna talhada na
pedra e estátuas com desenhos parecidos com os pintados na casa da
aldeia Ganar. Nunca vira uma estátua com um orixá, sequer ouvido
falar da existência de uma. Começou a pensar em armadilha, mas seu
escudo e sua lança estavam consigo. Temeu mas não parou até que os
outros pararam. Ciko entregou uma porção de amalá.
— Apenas caminhe em frente para dentro da
caverna e terá o que deseja.
Tyádora nada disse e caminhou. Até ser
tomada pela escuridão e não ver luz nenhuma à sua frente. Apenas o
próprio vulto e sua respiração. Linhas em tons escuros eram quase
indiscerníveis, mas o chão era liso como se polido de forma que
caminhou sem medo de cair. A luz ao fim do desconhecido começou a
brilhar. Apertou o passo no compasso da respiração ofegante. Escudo
e lança em mãos. A luz maior e seu passo aumentou. Viu-se correndo
como que partindo para o ataque.
— Pare! — Não era uma voz, mas um trovão
vocalizado.
Tyádora estremeceu e acabou obedecendo. Ficou
apoiada sobre um joelho e olhou para o chão amedrontada. Não
conseguia levantar a cabeça e ver a fonte da voz.
— Larga tuas armas e deixa apenas teu
presente.
— Não trago presente. — Uma pausa longa o
suficiente para deixar uma gota de suor escorrer pela sua face e
pingar pelo seu nariz.
— Levanta e deixe-me ver você. — Ela
obedeceu.
— Então você é o presente? — Disse
ignorando o amalá. Seu tom mudou, o trovão agora parecia mais com a
voz de um homem — Tem uma beleza comparável a Oshum,
com
certeza um presente diferente e muito agradável.
— Não sou um presente. Vim peg… o Ibiri…
— Respirou fundo e começou do início – Eu sou Tyádora, não
vim como presente, vim como princesa de Onijala. Vim reaver o Ibiri
de meu reino.
Então ela pôde ver o deus em sua frente. Sentado em uma pedra redonda cercado de colares de seis contas, vermelhos e brancos, como sua túnica ornada com seus próprios raios.
Então ela pôde ver o deus em sua frente. Sentado em uma pedra redonda cercado de colares de seis contas, vermelhos e brancos, como sua túnica ornada com seus próprios raios.
— Tyádora, agora lembro de quem é. Sua
beleza é mesmo lendária, atiçaria o fogo de qualquer homem vivo.
Apenas não a vi lutando, mas se todas as histórias forem verdade. A
lendária Tyádora.
— Lendária? Não sou lenda, nem quero ser.
Apenas vim pegar o amuleto de Onijala. Não posso voltar sem ele. Foi
roubado, segui a trilha que me levou aos Ganar e eles me levaram até
aqui. Não está?
— Pois bem. Eu te concedo a posse do meu
Ibiri. Se soubesse que fora roubado, não aceitaria.
Um ponto escuro da caverna iluminou-se e o
Ibiri se fez visível. O pequeno cajado de palha era um artefato
simples e Tyádora o segurou como algo mais valioso que ouro.
— Obrigada. Agora devo ir pois a colheita se
aproxima e não tenho mais tempo a perder. — Xangô que franziu a
testa.
— Sim o tempo. Ele não existe aqui onde
estamos — Desta vez foi Tyádora que franziu a testa. — Vá.
Refaça teu caminho até sua casa.
Sem dizer nada, Tyádora o fez. Caminhou pela
caverna, viu a sala iluminada de Xangô se reduzir a um ponto e
desaparecer. O breu indistinguível até ver a luz que era a saída.
Quando chegou na entrada não encontrou Ciko nem os outros Ganar.
Parecia ser tarde e não se surpreendeu que eles não a tivessem
esperado. Caminhou até a aldeia Ganar, mas preferiu apenas passar
entorno deles, queria chegar o quanto antes em Onijala.
VI
Tyádora, apesar do cansaço, começou a
correr quando reconheceu as muradas do reino. Foi até a área de
festa, mas estava bastante diferente. Haviam poucas pessoas e nenhuma
notou sua presença. Caminhou por entre os corredores velhos e
cansados pelo tempo. Deparou-se com uma bela mulher de traços
familiares. Ela arregalou os olhos e sua boca abriu num círculo de
pavor.
— Não pode ser. Tyádora?!
— Sou eu, mas quem é você? Onde está
Qussin, Nebula e Zene?
— Tyádora, como você pode estar assim. Não
mudou nada.
— Quem é você afinal?
— Tyádora, eu sou Zene!
Tyadora entendeu o pavor e quase fez a mesma
expressão. Elas se abraçaram, antes que voltassem a fazer mais
perguntas.
— Mas como? Eu fiquei fora nem duas luas.
— Não Tyádora. Faz quarenta anos que você
desapareceu. Porque você desapareceu?
— Eu não… eu trouxe o Ibiri. O que
aconteceu aqui? Onde está nosso pai, nossa mãe?
— Ah Tyádora, tanta coisa aconteceu. Tempos
muito difíceis. Ainda mais depois que nosso pai morreu. As colheitas
foram escassas. Muitas alianças que nosso pai fez foram perdidas.
Nossa mãe se foi algumas luas depois de você partir. Não somos nem
sobra da Onijala que você viu da última vez. Eu fiz o que pude –
Zene começou a chorar – fiz o que pude.
— Zabor fez isso com Onijala? Onde ele está?
— Não, não! Zabor partiu antes de nosso
pai falecer. Entregou Jagun para nosso pai. Dizia que te amava e que
não voltaria sem te encontrar primeiro.
Tyádora ficou de cabeça baixa tentando
assimilar os anos que perdera sem saber. Tanta tragédia se abateu.
As lágrimas continuavam a fluir e pingavam no Ibiri que estava em
sua mão. A expressão de falta de Mwelo lhe retornou a cabeça.
— Fique com isso, Zene, e guarde bem. —
Entregou o amuleto para Zene.
— Não Tyádora, isso é amaldiçoado.
— Não fale assim, Zene.
— Por causa do Ibiri, perdi pai, mãe e
minha irmã e passamos toda a sorte de dificuldades.
— Não. Foi minha culpa. Fique com ele e
reerga Onijala com ele.
— Como assim. Você não vai ficar?
— Não. Meu tempo se foi quando fui buscar o
Ibiri. Não tenho mais lugar no mundo. Só me resta procurá-lo.
VII
— E desde esse dia, muito se ouviu falar de
Tyadora. Cada um conta uma parte e eu conto tudo o que sei.
— Onde Tyádora está? Ela encontrou Zabor?
O que aconteceu? — Perguntou Oshanna, com todo o ardor de uma
criança curiosa. O sorriso de satisfação agradou o griô e o fez
sorrir também.
— Ela está por ai assombrando quem anda
pela noite sem avisar os pais. — Disse um dos meninos.
— Não. Ela é uma guerreira. Forte. Não
assombra ninguém. Posso ser como ela? — Oshanna discutia com os
outros.
— Saiba se ver no outro e será um pouco
como Tyádora, Oshanna.
O amanhecer brindou os pequenos ouvintes com
bocejos de quem deveria estar acordando a esta hora. Os adultos no
centro da aldeia acordaram e as crianças voltaram acompanhadas do
velho contador de histórias. Eles o receberam bem, por trazer as
crianças a salvo de seus descuidos. Depois de comer bem e descansou
um pouco, contou e ouviu mais histórias e depois seguiu em frente.
Olhou para a vastidão de terra que o cercava
e viu o mundo. O velho griô sabia o nome que se dava a cada porção
de terra, mas mundo era o único nome que lhe fazia sentido. O seu
mundo era um pouco de cada um que conheceu. Vasto apenas porque
compartilhou, daí vem o mais belo do conhecer. Foi o que fez naquela
noite de festa do reino de Idunu. Não diferenciava, há tempos,
vilarejo, aldeia ou reino. Eram todos reino. Cada reino com suas
pessoas, cada pessoa com seu mundo e era atrás dos mundos que
caminhava sem parar. Quanto aos reinos, ele os esqueceu desde que
abdicou do seu e partiu em sua procura. Em cada mundo que o velho
Griô conheceu, enxergou um pouco de Tyádora.
Bom conto amigo. Espero que continues com essa temática.
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