"Os três estigmas de Palmer Eldrich" é um dos romances emblemáticos de Philip K. Dick em sua fase psicodélica, mas basta ler um dos livros para saber que PKD é bem mais que o mero lado recreativo da química mas sim uma porta de entrada para as reflexões filosóficas que permeiam toda sua obra.
A estória se passa num futuro (2016, que já é passado para nós) onde a Terra está superaquecida e superpopulosa, onde os ricos podem desfrutar de um paraíso tropical na Antártida. A exploração espacial já rendeu diversas colônias espalhadas no sistema Solar, onde a vida é difícil e o recrutamento é compulsório. Uma da saídas dos colonos é o consumo de Can-D, uma droga alucinógena que "traduz" ambientes em miniatura, onde os usuários vivem uma vida de consumo no melhor estilo "American Way of Life" no corpo de Barbie de Pat Insolente. Esse mercado é explorado pelo traficante Leo Bulero que vende a droga para os colonos sob vistas grossas da ONU. A estória começa com a chegada de Palmer Eldrich e uma nova droga que ameaça o império de Bulero, a Chew-Z. Bulero recorre a seu funcionário, Barney Mayerson, um precog* que trabalha como consultor de moda para os ambientes em miniatura, utilizados pelos usuários de Can-D.
Ao longo da estória acompanhamos duas linhas narrativas: a primeira é a de Barney Mayerson vendo sua carreira profissional, pela qual deixou a esposa, ruir em meio a nova concorrência com a chegada de Eldrich. Dick consegue dar sensibilidade ao drama de Barney em meio a uma trama de intrigas enquanto o personagem, aparentemente bem estabelecido, busca seu lugar no mundo. A outra linha narrativa é o embate entre Leo Bulero com Eldrich, onde vemos dois tipos de "vilão", um o gangster tradicional, ao qual é integrado a sociedade e outro, na forma de Eldrich, um mal alienigena e estranho. Dick retrata em Eldrich um tipo de deus cruel ou, ao menos, muito distante do deus cristão de amor ou severidade. Este poder das drogas, seja a fuga pela Can-D ou a experiência transcendental da Chew-Z, se conecta com seu uso religioso mesmo que seus usuários não busquem ativamente com este sentido. Isso aparece na forma que se usa a droga Can-D: masca-se o alucinógeno observando dois bonecos do tipo Barbie e Ken, que se tornam avatares para a viagem a um mundo consumista que sequer existe mais na Terra. Algo relacionável a alucinação coletiva digital que Gibson se referiria, décadas depois. Isso acontece, pois, o autor trabalha muito com a intuição ao construir o seu mundo. O calor insuportável da Terra está mais ligado ao medo/fuga/covardia da sociedade que com o Aquecimento Global. Tudo isso em meio a constantes questionamentos do que é realidade e ironias escrachadas como a da "terapia de evolução", nas quais os habitantes da Terra pagam um bom dinheiro para serem melhores e capazes. Algo mais ligado ao status do que realmente uma evolução num sentido mais profundo.
O constante questionamento do que é a realidade, uma marca do autor, aparece com toda a força nessa estória. Personagens que se descobrem fantasmas de outras realidades possíveis, avatares e noções de realidade que brincam com a barreira entre o sagrado e o profano conduzem as jornadas dos personagens, principalmente a de Mayerson. A experiência de Can-D, algo intuitivamente parecido com a internet, é elevada com a Chew-Z. O uso dessa droga traz a experiência de ser parte de algo maior ou, em outras palavras, de ser a ilusão na mente de outro. Recomendo como leitura para iniciados na obra do autor. Para quem tem a mente fechada em relação ao uso de drogas eu não recomendo o leitor para o livro.
*Precogs são paranormais com a habilidade de ver o futuro. Eles enxergam todas as possibilidades de futuro e identificam as que tem maior probabilidade de acontecer. Eles são bastante recorrentes nas estórias de Philip K. Dick, apesar de serem mais lembrados no conto "Relatório de Minorias", que rendeu o filme Minority Report.
Nenhum comentário:
Postar um comentário