“Quando o caos tomou conta de tudo o que conhecia, Elissa Faina Till passou a acreditar que o prenúncio do desastre estivera encerrado em um minúsculo grão de areia. Aquele mesmo que ela havia retirado das dobras da saia de seu vestido de casamento numa terça-feira, quando o experimentou pela primeira e única vez.”
Assim começa a primeira parte do romance Viajantes do abismo, uma ficção científica steampunk escrita pela historiadora gaúcha Nikelen Witter. Já conversamos sobre outra obra da autora − Guanabara Real: a alcova da morte − que Nikelen escreveu junto com Enéias Tavares e A.Z. Cordenonsi, mas aqui ela brilha sozinha em outra obra steampunk. Desta vez, ao invés do tom aventureiro predominante no subgênero e da abundância da estética neovitoriana, temos uma abordagem mais voltada à reflexão sobre o meio-ambiente, ao mesmo tempo em que a autora faz um trabalho mais profundo de construção de sua protagonista.
Acompanhamos a história de Elissa, que vive na cidade de Alva Drão e está prestes a se casar com Larius Grey, um político em ascensão dentro do partido governista que está no poder da Tríplice República, quando é abandonada no altar. Passado algum tempo, Elissa tenta seguir sua vida como curandeira, quando a guerra entre governistas e independentistas chega a sua família. Obrigada a fugir, Elissa encontra a amizade de Tyla, dona de um bordel na cidade de Alephas, de uma menina misteriosa que aparece e desaparece como uma alucinação e de um andarilho que sempre traz o caos por onde passa.
Nesse mundo steampunk, a estética das tecnologias a vapor aparece em detalhes, e há pouca menção à estética neovitoriana, o que pode descontentar o leitor mais apegado a essas convenções do subgênero. Elissa evolui de moça submissa até se afirmar em um mundo completamente desfavorável, ao mesmo tempo em que a guerra logo se relaciona à degradação das áreas verdes, pelos desertos que se expandem em grande velocidade. A amizade com Tyla e com a irmã cientista, Teodora, tem forte papel nessa transformação. Infelizmente as duas personagens receberam pouco espaço. A história pedia uma relevância maior delas, ainda mais por se tratar de uma obra extensa, que se permitiu a abertura de alguns arcos secundários.
A decisão de concluir a história em um único livro agrada muito em um mercado empanturrado de narrativas divididas em trilogias, ou em séries, com primeiros volumes meramente introdutórios. Desta forma, as trezentos e quatro páginas de Viajantes do abismo fluem bem, pois a escrita é atraente, com reflexões maduras. Outra coisa que agrada é a trama rica em acontecimentos relevantes, que conectam os elementos construídos minuciosamente na primeira metade do livro. Isso não deixa que os acontecimentos soem forçados, por mais malucos que sejam. O leitor que ao abrir o livro espera encontrar uma mera aventura steampunk para admirar a estética elegante terá uma grata surpresa ao encontrar uma jornada de autoconhecimento e também da valorização do mundo.
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