segunda-feira, 19 de abril de 2021

Resenha #179 - Ìségún (Lu Ain-Zaila)


"Ìségún" é uma novela de ficção científica da escritora Lu Ain-Zaila, que se classifica como cyberfunk, uma variação do cyberpunk. Essa mudança não é apenas lançar moda ou apenas estético. É uma mudança filosófica que faz toda a diferença. A obra faz isso mudando a forma de encarar a distopia.

Distopias, sem querer teorizar muito, é uma forma que a FC retrata o oposto da Utopia, construindo futuros em que tudo deu errado (de forma irremediável) seja por ditadura, tecnologia, catástrofe ambiental ou a combinação de dois ou mais desses elementos. Já a narrativa utópica pressupõe uma história onde a sociedade evoluiu atingindo objetivos que hoje são apenas vontades. A Utopia de Thomas Morus, assim como as distopias clássicas (1984, Farenheit 451, Admirável Mundo Novo e, como gosto sempre de acrescentar, O Conto da Aia), fazem, a seu modo, críticas a sociedade atual, usando modelos perfeitos ou desastrosos. A utopia, porém, é mais que apenas um mundo perfeito. É um horizonte para se perseguir que quando se realiza deixa de ser utopia para ser realidade para então dar vazão a novas utopias no horizonte. Onde Ìségún entra nisso tudo?!

Acompanhamos Zuhri uma detetive do NCCOAH (Núcleo de Combate a Crimes da Ordem Ambiental-Humana) incumbida de investigar a morte do Dr. Diop, um pesquisador da Alphabio Tech. Zuhri percorre os meandros da Cidade Alta e Cidade Baixa em um mundo onde a degradação ambiental fez os poderosos buscarem as áreas mais elevadas para escapar da contaminação radioativa, enquanto a Cidade Baixa vive prensada entre os limites murados da Cidade Alta e a nuvem tóxica que contamina ao nível do mar. Além do mistério do crime, Zuhri precisa entender sua conexão com Ayomide, que veio da África cheio de mistérios ancestrais que tem profunda relação com Zuhri.

Zuhri vive num cenário distópico cyberpunk clássico mas a diferença está além do fato da protagonista ser negra e momentos de afirmação que vão além de retratar o sofrimento (o que já é ótimo) mas no elemento de agregação social entre o povo que vive oprimido. Está na comida boa e barata da Tia Cita; na ajuda que o pessoal do barracão da escola de samba da região dá a Zuhri; na rebeldia da rádio pirata, principalmente por essa rebeldia ser consciente e não ser um grito desesperado. Apesar de a sociedade em geral ter chegado aquele ponto de degradação ambiental e social, diferente das distopias clássicas, ainda há esperança e ela é pungente na vida cotidiana que é mostrada em paralelo a investigação de Zuhri. Essa esperança e esse cotidiano se entrelaça de forma mais orgânica aos mistérios do livro que a própria investigação de Zuhri e é isso que faz a novela brilha, e faz tudo isso sem que a investigação se torne irrelevante.

A escrita flui bem como uma aventura, sem permitir que os aspectos mais profundos da trama pesem a leitura e, tampouco, que a aventura se torne pueril. É uma obra consciente do que fala e sabe onde encaixar essa consciência de forma fluída em poucas páginas. Leitura obrigatória e prazerosa para quem quer conhecer o afrofuturismo e o que está rolando de novo na FC no Brasil.

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