segunda-feira, 14 de junho de 2021

Resenha #187 - As Crônicas de Marte (George R. R. Martin e Gardner Dozois)


"As Crônicas de Marte" é uma coleção de contos organizada por George R. R. Martin e Gardner Dozois. Marte é o cenário de todos os contos e é um assunto que sempre me encantou, ainda que seja pelos motivos diferentes que os leitores mais antigos. George R. R. Martin explica bem, na introdução, o sentimento de fascínio que o planeta gerou nos primeiros leitores de Ficção Científica. Marte ambientou histórias de civilizações antigas, invasões alienígenas, antes das primeiras sondas, as Mariner, nos anos 1960 e 70 acabarem com qualquer aura de magia e o sonho de encontrar vida em Marte, da mesma forma que em Vênus e Mercúrio. George R. R. Martin cita a trilogia marciana de Kim Stanley Robinson como a obra mais relevante escrita sobre Marte após as descobertas do início da corrida espacial. Obra que em nada relembra os tempos de ouro da FC. O objetivo da coletânea é trazer histórias que retomem aquela inspiração e imaginação que havia sobre o Velho Marte, o planeta conforme era sonhado antigamente. Confesso que não partilho do mesmo fascínio, pois não vivi aquele tempo, apesar de adorar As Crônicas Marcianas de Ray Bradbury, o Marte de Kim Stanley Robinson e de Andy Weir me atraem mais. Vamos ver conto a conto, como ficaram essas histórias. 

"Sangue Marciano" (Allen M. Steele) - Acompanha Ramsey, um guia turístico nascido e criado em Marte em um trabalho para o astrobiólogo Dr. Al-Baz que veio em busca de uma amostra de sangue de um shatan, aborígene original de Marte, para por a prova uma teoria. O conto prende pelo protagonista esperto e pela contraposição aos colonos de Marte e pela composição do povo original que ficou interessante. Um paralelo óbvio mas bem construído dos tempos de colonização.

"O patinho feio" (Mathew Hughes) - Fred Mather é um arqueólogo que trabalha para a companhia de mineração New Ares em Marte, preparando o terreno para grandes máquinas (Leviatãs) que separam os minérios, terra e insumos orgânicos de antigas cidades de marcianos autóctones. Porém o real interesse de Mather é conhecer aquela civilização que foi extinta quase que ao mesmo tempo da chegada dos terráqueos. Mather faz descobertas que o colocam em constante vigilância de seu chefe, Red Bowman. O conto tem um final aberto e quase decepcionante mas a exploração e a imaginação para essa civilização marciana compensam e salvam o conto. É o segundo conto consecutivo que segue a linha de paralelo entre a colonização de Marte com a colonização do continente americano.

"O acidente do Mars Adventure" (David D. Levine) - Conto narra a história do Capitão William Kidd que prestes a ser executado por pirataria recebe um perdão real, contanto que faça uma missão exploratória até Marte, junto com o o filósofo Dr. Sexton em um barco movido a balões, velas e remos! A premissa chega a ser engraçada em comparação com o que sabemos hoje mas é muito coerente com o que se sabia há mais de um século, e também com o espírito aventureiro dos colonizadores. Neste conto não temos o ele o elemento crítico como das duas primeiras histórias o que deixou o conto uma aventura engraçada mas pueril.  

"Espadas de Zar-tu-Kan" (S. M Stirling) - O conto se passa numa Marte ocupada por uma maioria de nativos em choque cultural com os humanos colonizadores. Seguimos Sally e Teyud, uma humana e uma marciana coerciva (mercenária) em uma missã de resgate a um colega de quarto de Sally, um cientista chamado Beckwoth. Em meio a aventura, ricamente narrada, temos um cenário que parodia os filmes orientais e bons momentos de ação. Muitos contos dessa "velha Marte", tem o pano de fundo do colonialismo e do choque cultural, talvez o autor tenha apenas trocado o choque cultural com indígenas da América do Norte pelos chineses atualmente. Seja como for, o conto vale pela ação e é bem escrito.

"Bancos de areia" (Mary Rosenblum) - O conto tem como protagonista um menino com problemas cerebrais e é pelo prisma dele que temos que coletar informações para entender o mistério do conto. A leitura exige mais atenção do leitor. O que se perde em fluidez ganhamos em satisfação a medida que vamos entendendo o desenrolar do conto. Difícil não lembrar do Charlie de Flores para Algernon, pois mesmo não sendo um relato em primeira pessoa, nem epistolar, temos a relação conflituosa de quem é tido apenas como um "retardado". Jorge, um dos mineiros, tenta traduzir o que Maartin sabe mas a incompreensão é a tônica do conto, tanto entre Maartin e as pessoas, quanto da sociedade, voraz por riquezas e as verdadeiras riquezas do local. 

"Nas Tumbas dos Reis Marcianos" (Mike Resnick) - Depois de um conto mais complexo, temos uma aventura arqueológica leve e fluida em busca de uma tumba secreta de um rei antigo milenar. Acompanhamos Scorpio, um mercenário da Terra e seu amigo venusiano Merlin, que apesar de andar sob quatro patas, é um telepata inteligente. Ambos aceitam um trabalho de Quedipai, um estudioso marciano atrás de uma tumba que apenas ele acredita existir de verdade. O grosso do conto é uma aventura no melhor estilo Indiana Jones espacial. A interação entre os personagens é divertida e faz as 42 páginas passarem muito rápido. 

"Saindo de Scarlight" (Liz Wiliams) - Acompanhamos Zuneida Peace, uma caçadora de recompensas que se disfarça de homem (Thane) e aceitou o trabalho de Houlsen para recuperar Hayfre, uma princesa de uma tribo, que era mantida trancafiada por Houlsen até quem um feiticeiro de Ithiss a raptou. Nessa perseguição ela encontra várias surpresas em um mundo que poderia encaixar-se em qualquer fantasia mas apesar das liberdades que a autora se dá em uma coletânea de FC, o conto se sobressai pela boa construção dos personagens. Zuneida é forte mas não é uma guerreira treinada ou especialmente habilidosa mas uma mulher que se vira da maneira que pode e isso se molda organicamente a história.

"Os manuscritos do fundo do mar morto" (Howard Waldrop) - Conto relata uma viagem de forma epistolar. Tanto de quem faz a viagem no presente como trechos e comentários sobre uma viagem passada. A vantagem do relato em primeira pessoa é muito bem explorada pela parcialidade da visão do protagonista que não sente necessidade de se descrever, e isso só acontece no final o que torna tudo muito surpreendente e satisfatório. Conto sucinto, sincero e elegante.

"Um homem sem honra" (James S. A. Corey) - Conto com narração epistolar, acompanhamos o relato  do capitão Lawton para a Sua Majestade de uma aventura, um embate com o capitão Smith dos mares do Atlântico até dos desertos marcianos atrás de um metal mais precioso que ouro. A escrita epistolar é coerente com as aventuras planetárias, aliás é a proposta da antologia. O conto esconde muitos ganchos de outras aventuras, nos deixando com vontade de saber mais, mesmo sem ainda terminar essa aventura, e consegue marcar bem os coadjuvantes como o jovem Carter, La'an que é de uma das espécies de Marte e da valente Carina Meer. O conto ainda deixa um questionamento sobre o que é a Honra e caráter, uma vez que Lawton é o desonrado que salva o dia, enquanto Smith que segue um estrito código de honra, é capaz de cometer atrocidades. Questionamento que expõe, a meu ver a contradição e a hipocrisia do pensamento europeu no período colonial.

"Escrito no pó" (Melinda M. Snodgrass) - Conto é um drama familiar transposta para um cenário de Ficção Científica. Acompanhamos Tilda, uma menina dividida entre a obrigação do legado da família e a vida que ela deseja. Stephen, avô de Tilda, é um viúvo amargurado pela solidão e pela perspectiva de ver seu legado (a fazenda) perdido por falta de quem o leve para frente. Seu filho Kane é casado com Noel, um militar e estão em Marte para ficar com Stephen após perder Catherine (mãe de Kane), e sua segunda esposa Mikaiko. O que era para ser provisório acaba dividindo o casal depois que Kane, influenciado pelo pai, decide que todos não devem criar raízes em Marte. Além da família dividida, pois Noel e Tilda querem sair de Marte e Stephen e Kane querem a vida da fazenda, temos os sonhos de Tilda que levam a uma cidade proibida onde as pessoas morrem e voltam nos sonhos dos vivos. A narrativa constrói os personagens com profundidade pelos seus desejos e conflitos, e direciona o leitor até o ápice onde a decisão de Tilda. Outro destaque é o casal homossexual, Kane e Noel, que é retratado de forma simples como deveria ser sempre.

"O canal perdido" (Michael Moorcock) - Este conto tem um clima de western muito envolvente, pela solidão do protagonista que teve de se virar pois a outra alternativa era a morte. Então, para Mac roubar e matar é apenas um meio de não morrer. Temos um herói improvável escolhido entre eras de possibilidades para uma missão de extrema importância. A história tem um ritmo irregular pois tem um infodump que toma 1/3 da obra. O conteúdo é interessante mas não deixa de ser infodump por causa disso. Ainda assim, o conto vale a leitura porque o estilo do autor é muito agradável. Falando nele, o autor é uma lenda na FC mas é incrível que tenhamos tão pouco dele traduzido para a língua de Camões, além da sua série de Fantasia Elric.

"A pedra do sol" (Phyllis Eisenstein) - Aqui a autora foca no relacionamento familiar como em "Escrito no pó", mas aqui disfarçado de escavação arqueológica. A procura de Dave, quando chega a Marte, é por seu pai, e quando ele descobre que ele há havia falecido decide terminar o último trabalho de seu pai com a ajuda de Rekari, um marciano nativo que estava com seu pai nos seus últimos momentos. As revelações e o desenvolvimento da história são sensíveis e recompensadores par ao leitor.

"Rainha do romance barato" (Joe R. Landsdale) - Outro conto focado no relacionamento familiar. Tal qual no conto anterior, o pai da protagonista está morto aqui ele morre na frente dela enquanto estavam em uma missão de transportar vacinas contra uma doença pela área congelada de Marte. Eles nos são apresentados apenas pelos sobrenomes (King). A menina King, decide levar o corpo do pai e precisa passar por provações para sobreviver e salvar as vidas das pessoas que precisam da vacina. Apesar de morto o pai King aparece o tempo todo nas lições e treinamento que refletem nas ações da filha. É como seu seu pai só pudesse morrer mesmo depois que a menina sobrevivesse. Uma boa aventura e, de brinde, uma reflexão sobre a função dos nossos ritos de passagem. Ah e a filha King ainda consegue tempo para encontrar segredos milenares de Marte. Vale a leitura!

"Marinheiro" (Chris Roberson) - Outro conto de piratas em Marte. Aqui temos menos galhofa e alguma tentativa de fazer um cenário mais coerente no "Velho Marte". Os piratas navegam pela areia e convivem com a degradação dos canais de água que agora são bolsões isolados. Esses lagos são basicamente como as ilhas na Terra. São porções onde a civilização ainda respira por aparelhos. Nesse cenário o pirata humano, Jason Carmody (o único "pele-rosada" em Marte), a bordo do seu Argo, luta para ser aceito enquanto tenta ajudar refugiados de uma nação autoritária do norte que estão para serem vendidos para a nação plutocrática do sul. A questão é levada a cidade livre dos piratas que leva a um confronto com um antigo desafeto de Jason. O cenário riquíssimo apresentado pelo autor deixa um gosto de querer ler mais aventuras neste mundo, ironicamente a mesma sensação deixada pelo outro conto de pirata dessa antologia.

"A ária da rainha da noite" (Ian McDonald) - COnto que encerra com chave de ouro a antologia. Escrito pelo autor de Brasyl (que infelizmente foi mal recebido por aqui) que nos mostra personagens cativantes em cenários inusitados. Acompanhamos dois músicos lorde Jack, um excelente músico em decadência e seu fiel Faisal, que além de tocar piano, também é um faz-tudo e muleta psicológica de Jack. Acompanhamos o ponto de vista de Faisal. O estilo de vida de Jack deixou ambos falidos e agora para pagar suas dívidas eles topam fazer shows para soldados que estão na linha de frente de uma guerra e acabam em meio ao conflito sangrento lutando para sobreviver. A relação dos dois é um dos pontos altos do conto. Faisal tem uma atração que se divide entre a admiração pelo talento e a sexual por Jack, que por usa vez consegue enxergar uma beleza na guerra que Faisal não vê e fica deprimido por saber que nunca terá a mesma percepção que Jack. Somando isso ao final surpreendente temos uma visão da guerra interessante, de alguém que não está diretamente vinculado a nenhum dos lados.

Neste vídeo que fiz no Diário de Anarres no YouTube, eu falo do livro de forma geral:


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