"Dieselpunk: Arquivos confidenciais de uma bela época" é uma sequência de Vaporpunk I e II, tanto como na ordem de publicação da série Mundo Punk da Editora Draco, como do próprio subgênero. Os mundos Dieselpunk são geralmente cenários retrofuturistas onde a tecnologia a vapor é substituída pela diesel, e do ponto de vista histórico é uma versão da bella epóque sem a desilusão das Guerras Mundiais ou de uma crise avassaladora do capitalismo como o Crash da bolsa de 1929. Um prato cheio para imaginar os cenários históricos alternativos e a proposta da antologia é privilegiar cenários brasileiros e lusos. O resultado é uma antologia, que trouxe contos bastante extensos onde os autores tiveram espaço para trabalhar bastante os cenários e costurar essas novas realidades e, de uma forma geral os autores foram muito felizes nesse quesito, trazendo muita diversão para historiador nenhum botar (muito) defeito.
“Fúria do Escorpião Azul” (Carlos Orsi) trabalha com o cenário em que o Brasil passa por uma revolução comunista nos moldes pseudo-stalinistas, e segue as peripécias de um vingador mascarado que enfrenta o regime descrito com uma dose tão elevada anticomunismo que me fez olhar o nome do autor para ver se não tinha sido escrita por Olavo de Carvalho. Porém, como o autointitulado filósofo já declarou abertamente que a FC é imbecilizante, fica a dúvida se o pseudo-filósofo gostaria da história. Nela acompanhamos o mistério que alterna, o Escorpião Azul e o jornalista chiquinho que investigando uma trama envolvendo um plano nefasto de um cientista comunista que faz algo pior do que comer criancinhas. A história é muito bem escrita, com boas cenas de ação, mas com personagens rasos que dá um tom canastrão a tudo, como o Batman dos anos 60, mas sem o mesmo carisma.
“Grande G” (Tibor Moricz) uma trama conspiratória palaciana/empresarial da família dona de Smoke City, forjada na poluição e motores a combustão. O megaempresário, o "Grande G", enfrenta uma conspiração tramada por seu filho e herdeiro para tomar o poder envolvendo a transferência de tecnologia limpa a cidade vizinha e atrasada Steam City. A trama é envolvente, a linguagem seca e cruel combina muito bem com o teor sádico cheio de cenas de incesto, que sobre mais um degrau que os Bórgias, no quesito sacanagem em família. Ainda que exagerado, muito mais próximo da realidade da burguesia empresarial que os comunistas do conto anterior.
“O dia em que Virgulino cortou o rabo da cobra sem fim com o chuço excomungado” (Octavio Aragão), nos retorna a um cenário de história alternativa, onde um cenário onde a Coluna Prestes (liderada por Luís Carlos Prestes e o tenente Siqueira Campos) e o bando de Lampião, com direito a participação de vários personagens históricos como Maria Bonita e Padre Cícero. Acompanhamos a história de forma parecida como aconteceu nos anos 20. Até um carioca misterioso oferecer armas com alta tecnologia para ambos os lados para que a coluna e os cangaceiros entrem em conflito, porém nada sai como os personagens esperavam. Para um historiador, é um conto cheio de fan service, porém achei os momentos finais bastante corridos. Talvez nem uma noveleta longa seja grande o suficiente para esta história.
"Impávido Colosso” Hugo Vera, conta uma história aventuresca de folhetim onde um Brasil imperial liderada por Dom Pedro III e um Barão de Mauá meio deslocado do tempo, descobrem-se em pé de guerra com a Argentina, patrocinada pelo imperialismo britânico que almeja derrotar o Brasil e o vizinho Paraguai. O conto tem total enfoque nas batalhas de robôs e não decepciona nesse quesito, porém a questão política é abordada de forma pobre e superficial, com patriotismos exagerados e ingênuos. Não me incomodaria se o conto não dispensasse tanto espaço para momentos elogiosos e vazios dos políticos. Uma enxugada na patriotada para a adição de uma segunda batalha faria muito bem ao conto.
"País da Aviação" (Gerson Lodi-Ribeiro) ao invés de trabalhar um cenário Dieselpunk propriamente dito, na visão de um personagem em específico, o autor optou por fazer um panorama da Hegemonia Francesa, resultado do sucesso dos planos de conquista de Napoleão quando sai vitorioso na Batalha de Trafalgar. Uma vez que nesta realidade, Napoleão contratou Robert Fulton para criar as armas que he deram a vitória. Seguimos vários cenários que acompanham o desenvolvimento do poderio francês na Europa, até o início do século XX quando uma Guerra Fria surge entre os EUA e a França. Um pouco antes, o núcleo principal da noveleta, segue os Irmãos Wright sendo recrutados para serem meros assistentes de le Petit Santos, aqui também inventor do avião. Os cenários que se sucedem são consistentes e fazem muito com o pouco espaço formando um belo panorama do cenário político nesse mundo. Apesar de ter adorado ver as áreas periféricas bem desenhadas, o centro do poder hegemônico ficou muito vago. Porém a coleção de pequenos cenários funcionou bem tanto individualmente quanto no conjunto.
“Ao Perdedor, as Baratas” (Antonio Luiz M. C. Costa) acompanhamos um cenários muito curioso e bem montado. Os indígenas se integraram de forma mais saudável a sociedade brasileira, a revolução industrial aconteceu mais cedo e o cenário político é de eleições tendo Cosme Bento como principal candidato. Acompanhamos um agente de uma potência ao norte que está em uma missão de assassinato para abalar as eleições. O conto adiciona ao cenário alternativo personagens reais (Karl Marx e Richard Wagner) e elementos da literatura (as baratas de Clarice Lispector e Franz Kafka). O autor trouxe uma visão otimista sem cair na ingenuidade em uma história com reviravoltas.
"Auto de Extermínio" (Cirilo Lemos) um dos meus autores preferidos da FC brasileira, trouxe uma história que privilegia a ação sem perder a consistência histórica, com um toque de New Weird. Nos anos 1920 o Império brasileiro ainda existe, porém seu monarca é um moribundo e sua queda é iminente. Integralistas, comunistas e militares apoiados pelos Estados Unidos estão na iminência de um golpe de estado. Acompanhamos Jerônimo Trovão um assassino de aluguel que terá um papel maior nesse jogo político do que gostaria. Ele é guiado por uma santa que atua como uma consciência exterior premonitória que o ajuda a ficar vivo. Seu filho, nômio, é seu auxiliar e também é acometido do mesmo tipo de visão, porém com um herói de HQ estadunidense. A noveleta derivou um romance "E de Extermínio" e o conto aumentou a vontade de ler o livro!
"Cobra de Fogo" (Sidemar Castro) trouxe a noveleta mais divertida da antologia. Num Brasil ainda imperial, a Grande Guerra Mundial de 1919-29 foi muito mais devastadora que a da nossa realidade, ao ponto em que a Liga das Nações impor uma "Pax Atômica" transferindo as resoluções políticas para uma forma presumidamente esportiva numa espécie de Corrida Maluca em que cada império compete com um tipo de locomotiva voadora gigante equivalentes a destróieres. O mundo é o cenário onde as etapas são disputadas, e na corrida em questão é por uma boa fatia da Amazônia. Os competidores são, obviamente o Império brasileiro, Alemanha, Áustria-Hungria (governada por Hitler), URSS (liderada por Trotsky), Japão, China, Estados Confederados (o sul venceu a Guerra Civil), Reino Unido, Mongólia, França, Espanha, Holanda entre outros. O bom uso dos clichês da corrida como uma boa fachada para a sujeira da política, espionagem e combates escamoteados uma torrente maravilhosa de referências cinematográficas e históricas. De Damocles Dummont, um espião brasileiro passando por Erving Hömmel, Jesse James III, Amon Göth, Charles de Gaulle, Antoine Saint-Éxupery, Olga Benário e até de Stalker de Tarkovsky e muito mais. É muito fácil imaginar essa novela numa aventura superprodução cinematográfica. Ao menos podemos fazer isso na nossa imaginação!
"Só a morte te resgata" (Jorge Candeias) alia uma linguagem mais sensível e intimista com um mundo alternativo. Se passa no mesmo mundo de "Unidade em Chamas" que saiu na Vaporpunk I, porém já no início do Século XX, onde as passarolas alçaram Portugal a condição de potência. O protagonista, Jefferson, um escravagista do Brasil do Sul que decide lutar contra a Confederação Portuguesa por sua postura multiracial. Acompanhamos as peripécias de Jefferson para retornar ao seu lar após ler uma carta de seu pai, cujo conteúdo conhecemos apenas no final. Apesar de ser difícil se conectar ao protagonista por conta de seu racismo aberto, podemos acompanhar um drama genuíno sem que necessitemos corroborar com sua visão de mundo. Uma pena essa viagem que o conto promove, no segundo e terceiro terço não serem tão dieselpunks quanto a primeira parte, mas ainda sim uma boa viagem.
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