terça-feira, 16 de junho de 2020

Resenha #135 - Esperando o mundo mudar (Guilherme Smee e Luan Zuchi)

Este é um daqueles pequenos achados de uma feirinha de material independente, em Porto Alegre, que encontrei há alguns anos e nunca mais voltei a encontrar. Por isso quando entro numa dessas feirinhas sempre tento sair delas com alguma coisa e, no meio de várias coisas baratas e atraentes, estava "Esperando o Mundo Mudar". Trata-se de uma HQ independente de 2016, roteirizada por Guilherme Smee e desenhada por Luan Zuchi e conta a história de um casal em meio ao rebuliço da Primavera Árabe no Egito em 2010. Toda a história é contada sem nenhum balão de diálogo deixando apenas as emoções e o traço simples contar a história. A história fica ainda mais dramática se olharmos para o Egito de hoje, com o presidente Mubarak, que apesar de ter sido deposto, faleceu impune em fevereiro deste ano, enquanto o país caiu em numa nova ditadura. Justamente o inverso do que aqueles egípcios tanto lutaram contra quando saíram as ruas em 2010. Lamento que não se produzam mais histórias assim: curtas, diretas, bonitas e em materiais baratos e com uma consciência política apurada, mas lamento principalmente porque ainda estamos esperando o mundo melhorar.
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terça-feira, 9 de junho de 2020

Resenha #134 - Vinte e Um (Nelson de Oliveira)

Vinte e Um é uma coletânea de contos de Nelson de Oliveira que junta duas épocas de sua escrita viajando no fantástico e insólito. O livro é um upgrade de Treze lançado em 1999, acrescido de mais oito contos. Predomina aqui o estilo característico de não desperdiçar as palavras em contos curtos que rapidamente te levam a viagens insólitas, ora se valendo da ficção científica, ora do mundo fantástico ou, inclusive, encontrando o fantástico sem evocar nada do sobrenatural.

A primeira parte do livro, os contos originais de 1999, Treze, conta com várias contos curtos que tem sempre algo inusitado. Algum ponto de vista que faça toda a diferença para entender a história ou um personagem fanho. Contos curtos demais para sintetizar sem entregar a graça deles. Contudo, o primeiro é mais longo. "Dies Irae", narra o dia enlouquecido de uma pedinte que se divide entre o amor selvagem e abusivo dos outros pedintes e uma dívida que todos tem com Gideão, um agiota que controla a entrada em um prédio como se guardasse os portões do céu/inferno, onde existem delícias misteriosas para quem pode pagar e horrores inimagináveis e gratuitos. 

Destaco também, "Gorducha" que pinta uma vida em um quadro tragicômico de um distanciamento insuportavelmente suportável; "Não sei bem o que, aqui" é uma cacofonia de sujeitos que são momentos dentro de uma mesma pessoa, funciona como um Divertidamente para adultos; e "Homenagem a Tróia" parece a visão de Cassandra, a vidente amaldiçoada por Apolo, do alto de sua torre obrigada a saber de toda a tragédia que viria sem ninguém que acreditasse nela.

A segunda parte do livro, "Sete" traz os contos inéditos que apesar de seguirem a mesma pegada de contos curtos, são mais criativos. Destaco "Gritos Ocultos" que pinta um drama familiar com os nossos silêncios, alternando falas corriqueiras e pensamentos reveladores e "Pintando o Sete" é um divertido caso de amor com um final muito inspirado. Por fim a última parte do livro Um, com um conto narrando capas de disco de vinil clássicas encarnando na pele de pessoas aleatórias. O estilo de Nelson é uma aula de como escrever contos, tanto na forma quanto nas ideias que nos capturam para a leitura conto a conto.
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terça-feira, 2 de junho de 2020

Resenha - Revista Peryc, O Mercenário nº1

"Peryc, O Mercenário" é uma criação do quadrinista e fanzineiro veterano Denílson Reis que trouxe seu mais importante personagem para uma edição em formato revista publicada pelo mesmo grupo da revista Quadrante Sul, que tem sido resenhado no blogue. Nesta postagem vamos falar sobre o primeiro número de Junho/2012 e, nas próximas semanas, os dois números seguintes já publicados até hoje.

Peryc é nascido nos pampas da América do Sul dois milênios após um holocausto nuclear que de regrediu a humanidade tecnológica e politicamente a uma nova idade média. Nesse mundo selvagem e perigoso, Peryc é um mercenário que viaja o mundo da forma mais livre possível, trabalhando como mercenário. É inspirado claramente no Conan e não tenta esconder isso, mas tem também sua personalidade e sua origem indígena o deixa mais interessante.

"Serpente de areia" é a primeira história, onde Peryc é surpreendido pelo ser monstruoso, enquanto vaga pelo deserto africano, mas não sabe se é real ou uma ilusão. "Taverna" é uma sequência direta onde no mesmo deserto, Peryc encontra uma taverna escondida onde protege uma princesa misteriosa. A edição segue com três textos que resumem as principais sagas de Conan nos quadrinhos e nos filmes, escritos pelo criador do Peryc. Por fim, "Rumo a Pedras Negras - parte 1" mostra o encontro de uma concubina exilada por um severo rei e Peryc quando são emboscados por saqueadores que os queriam capturar e vender como escravos. A história tem uma continuação nos números seguintes, assim como a história na Taverna. A edição ainda conta com ilustrações de página inteira que enriquecem ainda mais as várias versões do personagem que tem traços de vários desenhistas. A que mais me agradou foi a página inteira de Mathias Streb, porém no geral o traço é bonito e conseguem estabelecer uma ideia geral do personagem. No mais, terminei a leitura querendo ir para o próximo número.

   



Blogue do personagem http://perychq.blogspot.com/

Blogue Quadrante Sul http://quadrantesul.blogspot.com/
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segunda-feira, 25 de maio de 2020

Resenha #133 - A curva do sonho (Úrsula K. Le Guin)

"A curva do sonho" foi lançado em 1971, por Ursula Le Guin mais conhecida pelos romances do ciclo Hainnish, A mão esquerda da escuridão e os Despossuídos, além da série de fantasia: O Feiticeiro de Terramar. Aqui temos uma obra típica da New Wave da ficção científica, onde se busca novos horizontes de especulação, para além das ciências duras (Física, Química e Biologia) da época de ouro (1930-50), nas ciências humanas e de elementos religiosos/místicos.  

A história segue George Orr que vive atormentado com seu poder de alterar o tecido da realidade através dos sonhos. Devido a incapacidade de controlar os sonhos e por sua personalidade passiva, Orr busca alívio em drogas supressoras de sonhos quando passa a frequentar o consultório do médico psiquiatra Dr. Haber, de forma compulsória pelo uso dessas drogas. Uma vez que o Dr. Haber descobre que os poderes de Orr são efetivos, começa a usar George para manipular a realidade a sua vontade e sua crescente sede de poder.

A personalidade passiva de Orr acaba cedendo a ambição quase psicopata de Haber, travando debates interessantes enquanto fazem alterações e cenários em uma história que poderia ter saído de um livro do Philip K. Dick, mas a escrita refinada e imersiva de Le Guin torna impossível confundir com o estilo seco e direto de Dick, que foram  maravilhosos ao seu modo. Outra coisa bacana é a advogada Heather Lelache, que levanta questões raciais na trama e tem um envolvimento romântico com George. Quem já leu outros livros da autora, sabe que seus livros valem mais pela jornada que por qualquer final surpreendente, mesmo assim, sem uma reviravolta ela consegue entregar um romance sucinto, profundo e com um final muito bonito. Vale muito a leitura!
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segunda-feira, 18 de maio de 2020

Resenha #132 - A Construção do Imaginário Cyber (Fábio Fernandes)

"A Construção do Imaginário Cyber: William Gibson, criador da cibercultura" (2006) é um livro derivado da monografia do mestrado de Fábio Fernandes, onde o autor argumenta sobre a obra de William Gibson e como ela influenciou a cibercultura, não apenas especulando o futuro, propondo uma nova forma de vê-lo, mas contribuindo para molda-lo. Talvez essa resenha pareça um fichamento, provavelmente pois foi baseada num fichamento de uma leitura com marcações no texto, afinal não temos preocupação com spoiler aqui.


O primeiro capítulo analisa as contribuições de William Gibson para a criação da cibercultura com um entendimento melhor do conceito de Aldeia Global, de Marshal McLuhan e da comunicação instantânea especulada por Arthur C. Clarke. O conto "O Contínum de Gernsback" é a forma que Gibson mostra que o futuro limpo da FC dos anos 1930 parece uma propaganda nazista perto da realidade suja e desigual da visão dos ciberpunks.

O segundo capítulo busca trazer luz ao que é ficção científica trazendo o conceito de  estranhamento cognitivo/maravilhamento, além de caracterizar como um megatexto com palavras conhecidas (como robô ou nave) mesmo em obras diferentes.

O terceiro capítulo narra uma mudança na forma tradicional de FC dos anos 30-50, a Era de Ouro, onde despontaram nomes como Asimov e Clarke caracterizada pelo foco em áreas "duras" do conhecimento como a física, química e biologia em histórias limitadas ao confronto bem x mal, inspiradas no contexto da 2GM e passando pelo surgimento da New Wave nos anos 1970 onde despontaram Ballard, Ursula LeGuin e Delany, trocando o foco para áreas humanas como a antropologia, linguística e semiótica e tinha histórias multipolarizadas inspiradas no contexto da Guerra Fria e por fim, no movimento ciberpunk, que busca novas formas de especulação contrapondo-se fortemente a FC da Era de Ouro, tendo William Gibson e Bruce Sterling são os principais expoentes. 

O quarto capítulo faz um resumo da obra literária de Gibson, onde o autor extrai as principais contribuições conceituais de cada obra. Principalmente Neuromancer, Count Zero e Monalisa Overdrive. Para fazer isso o autor conta também os finais de algumas obras o que é importante para quem não leu algum dos livros doa autor. Como a obra é de 2006, ainda não haviam sido lançadas as sequências que formariam a Trilogia Blue Ant, apenas a primeira (Reconhecimento de Padrões) que é especialmente tratada no capítulo cinco. 

Em Reconhecimento de Padrões, o autor a aponta como uma repetição do que Gibson havia tratado em suas obras anteriores mas sem a especulação de uma FC, pois a obra se passa no presente. Por exemplo, a forma de megacorporações (como a Tessier-Ashpool de Neuromancer) é substituída pela pequena empresa Blue Ant, ágil e terceirizadora de staff, diferente do conglomerado que praticamente encarcera funcionários valiosos como em Count Zero. Isso também aparece na protagonista que reúne algumas características de personagens anteriores como Case, Laney, Molly Millions. O autor ainda faz reflexões sobre os fóruns que Cayce frequenta com comunidades na internet que ainda iriam se alastrar nas duas últimas décadas, dando o exemplo da época, o Orkut. As próprias repetições entre as especulações dos primeiros livros e Reconhecimento de Padrões mostram o quanto Gibson influenciou a criação da cibercultura e também como Gibson foi modificado por elas.

Espero não ter distorcido nenhuma reflexão do autor aqui, ao tentar colocar o que li em menos palavras. A monografia que gerou este livro é uma das pioneiras na abordagem da ficção científica na academia, aqui no Brasil e isso deve ser o suficiente para começar a leitura. Então, se você gosta de ciberpunk, cibercultura e não tem medo de uma leitura de não-ficção inteligente recomendo esse livro!
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segunda-feira, 11 de maio de 2020

Resenha #131 - Realidades Voláteis & Vertigens Radicais (org. Luiz Bras)

"Realidades Voláteis & Vertigens Radicais" é uma coletânea de contos de Ficção Científica brasileiros organizado pelo superativo Luiz Bras, pseudônimo de Nelson de Oliveira, que promove uma verdadeira reunião de novos talentos da Ficção Científica BR, onde temos muitos nomes para ficar de olho.

Os contos são separados em dois grupos que parecem dois livros distintos. A primeira parte, "Realidades Voláteis", são contos de Ficção Científica que fazem especulações usando muita ironia nos primeiros contos, que são bastante curtos, como em "Inteligência" (Laura Lin) e "Acordo" (Lígia Gomes), passando pelo escrachado "Relações Públicas" (Petrônio de Tílio Neto) e a alegoria política de "Zé e as formiguinhas ilustradas" (Ivan Carlos Regina) e vão elevando o tom de seriedade até o conto cheio de epístolas de um computador renegado em "Relato nº11" (André Argolo). Os contos são muito bem escritos e muitos deles bastante curtos (são 14 contos nas 100 primeiras páginas) e o que é muito bem vindo é o jeito brasileiro que corre solto nas páginas, não apenas nas localizações das histórias mas na fluidez no uso de situações e a  linguagem como usamos por aqui.


A segunda metade do livro, "Vertigens Radicais", se mostra totalmente disposto a  viajar a fundo no fantástico sem a preocupação da especulação. Contos que tendem mais ao  lisérgico e ao fantástico, sem abandonar completamente as especulações que caracterizam a ficção científica como em "Lourdes" (Lorena Ribeiro) e "Pílulas de Einstein" (Gisele Mirabai) onde o cérebro de Einstein viaja na mente dos cientistas. Em "O lixão trans-espacial (Tadeu Sarmento); "Novinha Suscetível" (Paulo Lai Werneck) e, principalmente em "O jardim das delícias não-terrenas" (Dindi Coelho), o sexo e a FC são abordados de forma descontraída, primeiro com a rotina dos habitantes de um lixão que recebe visitas de alienígenas, no segundo temos uma pincelada de um atendimento num bordel de ginoides sexuais e por fim o relacionamento de uma mulher com um ginoide que troca de forma ao gosto do cliente.

"Expire, inspire" (Belise Mofeoli) é uma pérola sobre a desigualdade que é a diferença entre a vida e a morte; e comprimidos não bastam. Temos o uso criativo dos computadores nos contos "Buscador" de Luiz Bras, organizador do livro, em que um homem pode buscar o futuro ou uma profecia autorrealizável?!; e "Invisible Tool" (Gláuber Soares) onde um programador não consegue mais sair do trabalho. Também temos duas viagens ao inconsciente, em "só restou eu" (Toni Moraes) e o conto do saudoso Maro Aqueiva, "Me and You" onde um piloto onírico está muito longe de estar no controle, sendo apenas um passageiro de uma mente criativa. e encerrando a segunda metade do volume, um conto com mais fôlego: "Quinas" (Tereza Yamashita), encerra o livro numa viagem maluca no tempo, transformações biológicas e uma fêmea traída.

O balanço final é de um livro muito divertido e gostoso de ler, e que mostra a Ficção Científica brasileira num momento muito prolífico, criativo e cheio de personalidade. Recomendo procurar essa obra e olhar com mais carinho para a ficção científica em terras tupiniquins.
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terça-feira, 5 de maio de 2020

Resenha #130 - Como Ler Melhor 1 e 2 (Fábio Fernandes)

"Como Ler Melhor: Dicas para quem quer ser foda na leitura" e "Como Ler Melhor 2: Em tempos de quarentena" são guias para quem gosta da atividade da leitura e quer tirar dela o melhor proveito possível. Foram escritos pelo Fábio Fernandes, que além de escritor, tradutor e professor é um leitor voraz que já teve problemas por não conseguir ler tanto quanto gostaria e compartilhou nesses livros uma série de dicas que podem iluminar o caminho de quem anda confuso e é para esses que o livro vale a pena. Pois além de indicar possíveis caminhos, as dicas podem nos revelar que já fazemos algumas coisas certas mas apenas não nos damos conta disso ou achamos que é errado. A argumentação simples e direta do autor tem um ritmo de leitura muito agradável e, ao menos para este que vos resenha, fez reavaliar novas possíveis atitudes que pretendo tomar e tirou o peso de algumas coisa que já fazia.

O autor escreveu o "Como Ler Melhor: Dicas para quem quer ser foda na leitura" em fevereiro deste ano reuniu as primeiras dicas e em abril, escreveu "Como Ler Melhor 2: Em tempos de quarentena" ampliou o conteúdo direcionando as dicas para os tempos de isolamento. Resolvi fazer um texto para os dois livros pois o segundo complemente o primeiro e as considerações para ambas as obras não mudam. Recomendo ler os dois em sequência, mesmo depois que o isolamento terminar pois são leituras muito breves e devem ajudar nas próximas leituras.
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terça-feira, 28 de abril de 2020

Resenha #129 - O Planeta dos Macacos (Pierre Boulle)



"O Planeta dos Macacos" (Pierre Boulle) é um dos clássicos da Ficção Científica, escritos por um autor que não se consagrou pelo gênero e sequer se considerava escritor de Ficção Científica. Boulle, ganhou fama com seu "A Ponte do Rio Kwai", que assim como "O Planeta dos Macacos" ganharam adaptações cinematográficas que expandiram o sucesso de suas obras, ainda paradoxalmente o autor não tenha um nome conhecido, encoberto pelas adaptações no cinema de seus sucessos.

A história é simples e bastante conhecida: Ulysse Merou é membro de uma pequena tripulação que busca explorar o espaço por vida inteligente junto do Professor Antelle e Arthur Levain que parte rumo a estrela gigante vermelha de Betelgeuse. Chegando lá após um breve encontro com seres humanos bestializados e selvagens descobre que o planeta é tomado por macacos inteligentes e desenvolvidos, e Ulysse, desgarrado do resto da tripulação, tenta provar sua racionalidade.

É um esforço inútil tentar esconder algum spoiler como sempre tento fazer nas minhas resenhas, quando se fala de um dos finais mais conhecidos da história do cinema, mas cabe avisar que o final do livro é diferente e não menos impactante que o filme. E isso pode atrapalhar a leitura pois boa parte da genialidade da obra é seu final mas está longe de ser o único atrativo do livro. Primeiramente, além de ser curta, a escrita direta de Boulle é ótima para ler na praia, sem precisar um dicionário ao lado e tudo isso sem perder a capacidade de nos fazer refletir. Segundo, a ironia com o autor que conduz a história vai além da própria situação inicial e é aprofundada em várias situações ao longo do livro. Terceirto, a escrita ágil garante uma tensão que faz com que, mesmo conhecendo o final do cinema, queiramos saber o que (e como) vai acontecer no final e, por fim, a edição da Aleph traz materiais extras muito bons para ler após o fim da história: são dois artigos falando sobre o autor e uma entrevista transcrita do rádio. Sendo assim, o livro vale a leitura e não se deixe desanimar por já saber o final do cinema pois a leitura vale a pena.




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terça-feira, 21 de abril de 2020

Resenha #128 - Cyberpunk (Cirilo S. Lemos e Erick Santos Cardoso)


"Cyberpunk: registros recuperados de futuros perdidos" é uma coletânea da editora Dacro organizada por Cirilo S. Lemos (O Alienado e E de Extermínio) e Erick Santos Cardoso. A coletânea faz parte da série Mundo Punk, que nos trouxe coletâneas de diversos subgêneros retrofuturistas da ficção científica como Solarpunk, Steampunk (que na coleção se chamam: Vaporpunk I e II) e Dieselpunk, derivados justamente do ciberpunk, sendo este volume o auge da coleção. A coletânea privilegia autores brasileiros e contos inéditos e como o prefácio de Fábio Fernandes afirma, foi valorizado o lado "punk" ao invés de ficar restrito a estética "cyber". Agora vamos falar dos contos 

"De lentes invocadas e tapiocas de queijo" (Santiago Santos): Fabíola Etcheverria é uma fotógrafa reconhecida que aceita um trabalho para cobrir um evento empresarial em Cuiabá-MT. O autor faz uma bela viagem em uma cidade ciberpunk fora dos grandes centros urbanos de forma bastante fluida, ainda que devido as mudanças climáticas, o Mato Grosso ganhe importância nacional. A trama acaba se desenrolando como a maioria das histórias do gênero, com um trabalho que não é o que parecia ser e o autor conduz a história de forma que fica interessante enquanto a história chega ao final. Foi um excelente início para a coletânea.

"A lua é uma flor sem pétalas redux" (Cirilo S. Lemos): Conto faz uma versão ciberpunk das favelas cariocas com a linguagem seca e cruel que caracteriza tanto a favela quanto o high tech/low life, e tudo de forma bastante realista, afinal os últimos 50 anos de avanço tecnológico não diminuiram a desigualdade, porque os próximos 50 seriam diferentes? A história acompanha Mirolha, um menino soldado do tráfico que busca subir nas graças de Tubarão, chefe da Comunidade Autônoma do Buraco da Pedra, quando perde sua arma e que reconquistar o respeito. [melhor conto da coleção]      

"Caos Tranquilo" (Ricardo Santos): Zima trabalha em uma grande corporação na Bahia, mas encontra-se em uma caçada enquanto busca por informações de MC enquanto é ajudada por Max. Enquanto isso Edmo é um pacato pesquisador de antiguidades e possui segredos que afetam a grande caçada na qual Zima se vê como alvo. A novela tem bastante ação e uma história intrigante onde nada é jogado no colo do leitor.

"A gota d’água" (Daniel Grimoni): Milton é um vendedor de guarda-chuvas em um mundo afetado por mudanças climáticas que quer apenas atender ao desejo do seu filho em enxergar normalmente, mas encontra resistência de sua esposa. Milton vê o mundo desabar enquanto explora seus próprios segredos, quando tudo vem a tona. O forte nesse conto é a linguagem poética, enquanto os segredos e reviravoltas são muito bem colocados na trama. Uma leitura forte, tocante e é o conto mais bem escrito do livro.  

"Folhas no terraço" (Michel Peres): Conto noir numa Recife futurista, onde o investigador particular Flaiano aceita um serviço da senhora Miragaia que deseja vingança ao que fizeram ao seu irmão. Conto faz um tour pelo submundo da prostituição sado-masoquista e modificações genéticas e consegue prender com o mistério e o caminho investigativo de Flaiano. Conto fez bom uso dos clichês em um cenário brasileiro.

"Boca Maldita" (Claudia Dugim): Conto é uma viagem na pele de Hani, um garoto de programa que percorre os territórios de três culturas diferentes atendendo seus clientes e colecionando amantes. O conto encaixa-se perfeitamente no new wierd sem sair do ciberpunk. A história é uma viagem pela civilização que restou do mundo no continente antártico e suas três culturas. Elas coexistem mais em aceitação que guerra mas a passagem de Hani agita as coisas. Chama a atenção a linguagem crua e direta e a sexualidade livre desse mundo, feito para chocar a família tradicional brasileira (felizmente).

"Cyberfunk" (Carlos Contente e Rodrigo Silva do Ó): Cyberfunk é uma perseguição frenética na pele de Jorginho em meio a corporações chinesas e uma vida fodida nas favelas do Rio para tentar mudar de vida. Uma das melhores misturas do ciberpunk com a realidade brasileira e a baixa qualidade de vida ao nosso modo. A ação é frenética, que faz valer o "funk" no título, e os autores conseguiram deixar tudo muito fluído o que melhora a experiência da leitura, que antes de terminar já se tornou um dos meus preferidos do livro. 

"Próximo nível" (Marcelo A. Galvão): Alice é uma bug zapper reconhecida e é chamada para resolver um problema com a conta de dois jogadores de um MMORPG jogado no mundo todo, que a principio foram "assassinados" no jogo e tiveram contas excluídas, o que pode levar embaraço, processos e inclusive flopar o jogo. Alice entra no mundo do jogo e começa um trabalho investigativo para encontrar o bug. O conto consegue mesclar bem o mistério em um mundo virtual, sem parecer infantil ou fútil, de forma competente e convincente. O final consegue surpreender na forma dos acontecimentos com criatividade. 

"Sonho de Menino" (Marcel Breton): Conto passado em Minas Gerais, o que fica evidente pelo sotaque colocado por extenso nos diálogos, e conta a história de Paulo que se envolve com traficantes de sonhos quando compra um dos seus produtos que foi roubado deles. Começa a perseguição ao sonhador que quer apenas realizar uma fantasia e acaba em um esquema maior que ele. O conto teve uma leitura um pouco truncada pela forma de colocar o sotaque mineiro de forma literal nos diálogos, o que particularmente não apreciei muito mas a história é boa e tem um final que consegue surpreender.

"Recall" (Karen Alvares): O sonho de ser mãe ao alcance da mão em uma prateleira. A biotecnologia capaz de fabricar vida, ou melhor, de controlar a forma como a vida vem ao mundo é trazida de forma impactante neste conto. Flávia deseja realizar o sonho de ser mãe depois de dois anos de uma separação difícil e encontra no bebêmatic a solução mas ser mãe e controlar o destino de uma vida não é tão simples quanto comprá-la. O conto é envolvente e muito bem escrito.

"Sonhos wifi" (Fábio Fernandes): Problemas com um jogo de Realidade Virtual prendem um grupo de jogadores em camadas de falsas realidades numa São Paulo deserta e cheia de predadores bizarros. O conto tem uma linguagem furiosa e fluida, como se fosse uma história contada numa mesa de bar, mas com questionamentos profundos sobre a realidade, sem deixar claro se alguém sabe onde ela está.

"Amor em Antares" (Alexey Dodsworth): O conto entrou nessa coleção graças a superação das metas do financiamento coletivo que permitiu o lançamento do livro e o encerra com o conto mais tocante da coleção. Marie é uma menina autista com problemas para se relacionar com as pessoas e encontra no amor de Seon, o significado desse sentimento. O final é emocionante e tudo foi conduzido com bastante habilidade pelo autor.
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terça-feira, 14 de abril de 2020

Resenha #127 - Epílogo (Victor Allenspach)

"Epílogo" é o terceiro livro que Victor Allenspatch lança de forma independente e o segundo de Ficção Científica. Uma bibliografia curta mas que na segunda obra mostra uma grande evolução em comparação ao já ótimo A procura de vida inteligente de 2015. Em Epílogo, temos uma história densa em um mundo pós-apocalíptico com elementos de cyberpunk e do terror, resultando numa viagem profunda por fragmentos de uma civilização que falam diretamente com nosso presente.

A história começa com a protagonista acordando sem memória. Ela é ressuscitada por Lázaro que consegue salvá-la apenas dos ombros para cima. Transformada num ciborge, ou biônico, como a chamam nos esgotos onde passa a viver, recebe o nome de Proto. Neste futuro pós-apocalíptico, perdido no tempo, os ventos solares devastaram quase toda vida na superfície e os sobreviventes dos apagões sobrevivem em esgotos sujos, onde as doenças se alastram e membros são substituídos por próteses robóticas corriqueiramente enquanto o câncer devora os habitantes.

A narrativa é permeada por reflexões constantes de Proto, que apesar de todas as dificuldades, está sempre se reavaliando e se redescobrindo e por ter perdido a memória procura completar suas próprias lacunas existenciais. Tudo isso é permeado por momentos cheios de tensão e terror em que sua vida fica por um fio, seja por recorrentes falhas em seus componentes artificiais quanto pela fragilidade de sua parte biológica. O fato de Proto ser mulher não é gratuito: a posição das mulheres nesse mundo não é melhor, nem pior, que a atualidade entrando de cabeça nas reflexões do autor sobre o que de fato muda na humanidade em condições adversas, quando não terríveis.

A ambientação, apesar de limitada pela visão de Proto, é justificada pela característica de isolamento dos nichos populacionais de sobreviventes que Proto encontra ao longo da história. Ao mesmo tempo que ela é uma espécie de pária por sua condição ciborgue e por sua amnésia, a falta de laços concede uma mobilidade libertadora. É no deserto que ela passa a perambular que temos essa noção de forma marcante.


A escrita é bastante direta na descrição das cenas mais fortes, passando a visão de naturalidade da realidade deste mundo. Essa mesma naturalidade passa uma falsa impressão de que a obra não é profunda nas reflexões pelo simples fato de Victor não ter uma escrita prolixa, tornando Epílogo uma leitura bastante acessível a qualquer leitor. Concluindo, considero a obra um achado em meio a tantas obras independentes lançadas em e-book, onde não é raro encontrar obras pouco lapidadas, para não dizer mais. Já o autor, espero que consiga ganhar os olhares das editoras pois seus dois livros independentes já mostram sua qualidade.



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terça-feira, 7 de abril de 2020

Resenha - Revista Quadrante Sul 10

Chegamos a resenha da, até então, última edição da Quadrante Sul. Edição que celebra o personagem Lucas Blood, o Predador. Um vigilante urbano que perambula pelas ruas sujas apenas com sua moralidade e violência para fazer justiça com as próprias mãos. Temos duas histórias do personagem que ironicamente não estampa a capa, podemos vê-lo apenas no canto superior esquerdo. O personagem foi criado em 1988 pelo gaúcho Carlos Fernando Ferreira. São 30 anos dá edição número 1 e 30 anos do personagem. Mas vamos as histórias.

A primeira se chama "Primeiras Vezes" e mostra planos urbanos interessantes e bem desenhados para depois mostrar um estuprador atacando uma mulher até que o predador intervêm. Na segunda história "Chaver" (amigo, em hebraico) o Predador recebe ajuda de um rabino das redondezas e faz amizade com ele. A história foca nas conversas e não tem ação, ao contrário da primeira história. Depois a edição traz uma entrevista com o fanzineiro Sérgio Toshihiro e conclui com uma matéria sobre a Fanzine Metrópolis. A edição é boa, apesar de preferir as que tem várias histórias curtas mas ainda assim é uma boa adição a coleção.


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terça-feira, 31 de março de 2020

Resenha #126 - O Conto da Aia (Margareth Atwood)

"O Conto da Aia" (1985) é um clássico das distopias, que narra uma experiência intensa de uma mulher em uma situação extrema e expõe o lado mais sombrio de uma cultura que se coloca como o bastião da liberdade. O livro, que já era bastante conhecido, ganhou mais notoriedade quando foi adaptado para a televisão em forma de série.

A história se passa em um futuro próximo onde a protagonista, que se identifica apenas pelo nome/posto de Offred, narra sua rotina sob vigilância pesada e obrigações humilhantes numa ditadura teocrática de base cristã que emergiu após uma crise de infertilidade.

Offred, na escrita de Atwood, narra com uma riqueza de detalhes as nuances de sua monotonia e do enclausuramento tanto físico quanto mental. A protagonista tem dificuldade de obter informações sobre o mundo exterior enquanto faz digressões sobre todo o processo de perda de liberdade e separação da sua família. A única coisa a qual Offred se prende é a sua filha que lhe foi tomada.

A escrita da autora acompanha os sentimentos da protagonista: Narra o tédio de forma lenta, nos trazendo muitas nuances do pouco que ela consegue ver do mundo. Há muitas troca de olhares, impressões, dúvidas, conversas sussurradas, informações de terceiros e sinais combinados que chegam a conferir um ar de espionagem a história. Contudo, a obra pode desagradar por ser parada. Não há coisas acontecendo o tempo todo, em oposição a série de televisão. Essa trouxe bastante interesse para o livro e adaptou muito bem a história em vários elementos. A história é bem fiel ao livro e a medida que as renovações de temporadas foram acontecendo os eventos do livro foram extrapolados. 

A série tem um ritmo mais tenso, emocionante e tem muitas reviravoltas. Essa experiência pode acentuar a impressão de lentidão do livro devido a uma expectativa equivocada, caso o leitor comece a leitura após ver a série. Se o leitor aceitar bem essa característica, vai poder aproveitar melhor a leitura mas recomendo ler o livro antes da série pois a adaptação vai funcionar melhor devido a fidelidade entre as mídias.
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